Rodrigo Ratier http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br Um espaço com visões, provocações e esperanças sobre a mais nobre das atividades humanas: educar. Wed, 25 Mar 2020 20:18:24 +0000 pt-BR hourly 1 https://wordpress.org/?v=4.7.2 Discurso une WhatsApp bolsonarista, mas críticas nunca foram tão presentes http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br/2020/03/25/discurso-une-whatsapp-bolsonarista-mas-criticas-nunca-foram-tao-presentes/ http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br/2020/03/25/discurso-une-whatsapp-bolsonarista-mas-criticas-nunca-foram-tao-presentes/#respond Wed, 25 Mar 2020 20:18:24 +0000 http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br/?p=183 pronunciamento de Jair Bolsonaro na noite de ontem (24), segundo reportagem da Folha de S. Paulo, ambicionou “municiar o eleitorado bolsonarista a voltar a sair em defesa do governo”. A estratégia se fez sentir no braço mais virulento da máquina de propaganda do presidente, o WhatsApp. Após a fala em cadeia nacional, os grupos foram inundados por postagens menosprezando o impacto epidemiológico do novo coronavírus,  contrariando a orientação de órgãos de saúde internacionais e do próprio Ministério da Saúde. Mas críticas e contestações, até então ausente desses ambientes, também se tornaram presentes, evidenciando fissuras no “núcleo duro” de apoio a Bolsonaro.

Os chamados grupos públicos de WhatsApp são uma arma importante na difusão de mensagens de apoio ao presidente. Aproveitando-se da criptografia do aplicativo, que torna impossível a regulação dos conteúdos veiculados, é nesse ambiente que circulam as peças mais radicais da propaganda bolsonarista. De lá, viralizam para grupos fechados – de amigos, de família etc.

Desde 2018 acompanho a atividade dessas comunidades. Atualmente, monitoro 29 delas. Há poucas mensagens autorais. Numa medição de 24 horas que realizei em fevereiro, 76% delas eram encaminhadas ou copiadas. Muita gente está nos grupos, mas pouca gente escreve — na mesma mediação, 50% das mensagens foram enviadas por menos de 2% dos usuários. E a qualidade da informação é baixíssima — na pesquisa, só 9% dos links remetia para a mídia profissional. O restante indicava sites hiperpartidários ou perfis de apoiadores no YouTube.

Da “pane no discurso” à “ordem unida”

O discurso geralmente focado desses grupos havia entrado em pane desde as manifestações do dia 15. A rede sentiu o repúdio público à presença de Bolsonaro nos protestos. A quantidade diária de mensagens diminuiu, e os militantes de WhatsApp, embora evitando críticas ao presidente, dividiram-se entre o negacionismo da epidemia, insultos ao embaixador da China — em apoio aos tuítes ofensivos do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) –, comemoração por supostas “curas” (cloroquina, cujo uso ainda não é seguro, gargarejo com vinagre — inócuo — e mesmo creolina — você leu direito, estamos falando do produto altamente tóxico para seres humanos), além de dicas para o período de quarentena. As peças abaixo são amostras do material que circulou pelos grupos no último fim de semana:

(Crédito: Reprodução WhatsApp)

As críticas ao isolamento social compulsório começam a subir de volume ontem, coincidindo com o decreto de quarentena por 15 dias em São Paulo, determinação do governador João Doria (PSDB-SP). Após o discurso de Bolsonaro, a pauta se tornou dominante nas postagens. O número de mensagens também cresceu. No grupo mais ativo, foram 332 entre as 21h de ontem e as 14h de hoje — média de 20 por hora com pico de 40 entre 9h e 10h da manhã.

O tom geral dos posts seguiu duas linhas argumentativas, ambas presentes no discurso de Bolsonaro. A primeira, de que a doença não é tão grave. Uma variação desse argumento reconhece alguma gravidade, mas atribui o coronavírus a uma fabricação da China. O microorganismo é chamado de “vírus chinês” ou de “ameaça comunista”:

(Crédito: Reprodução WhatsApp)

No território nacional, o inimigo é a “esquerda”, conceito bastante largo nos padrões bolsonaristas, como se pode ver na imagem abaixo. Em determinadas postagens, Doria e Witzel são chamados de “governadores socialistas”:

(Crédito: Reprodução WhatsApp)

A segunda linha argumentativa é de que a economia não pode parar. A ideia da “morte de CNPJs” exemplifica essa estratégia:

(Crédito: Reprodução WhatsApp)

(Crédito: Reprodução WhatsApp)

(Crédito: Reprodução WhatsApp)

Um suposto alinhamento com Trump contra o “coronafarsa” recebe destaque. Outros países supostamente sem quarentena são usados como exemplos que podem ser seguidos. Diversas informações são falsas. Em Israel, há quarentena semelhante à do Estado de São Paulo, informa o “Times of Israel“, incluindo multa e prisão para os infratores:

(Crédito: Reprodução WhatsApp)

As críticas como novidade

Nos grupos bolsonaristas, postagens contrárias ao presidente são virtualmente inexistentes — integrantes questionadores são rapidamente excluídos pelos administradores. Em meu levantamento de fevereiro, de um conjunto de 1.320 postagens, apenas uma única mensagem trazia crítica. O número de contestações continua baixo, mas já se torna evidente — informação relevante para um ecossistema que, basicamente, faz propaganda do presidente:

(Crédito: Reprodução WhatsApp)

Há mensagens de apoio à quarentena, inclusive com uso do humor:

(Crédito: Reprodução WhatsApp)

Repercute-se tuítes de antigos aliados…

… lamenta-se a postura da suposta “mídia amiga”…

(Crédito: Reprodução WhatsApp)

… e outras medidas desastradas do presidente, como a MP — depois modificada — que propunha suspensão de contratos de trabalho por quatro meses:

(Crédito: Reprodução WhatsApp)

Persistem, ainda, postagens genéricas, de apoio incondicional a Bolsonaro. São bem menos numerosas do que semanas atrás. As mais emocionais recorrem ao ideário religioso para para reforçar a mensagem:

(Crédito: Reprodução WhatsApp)

Enquanto isso, a sociedade civil procura formas de se ajudar. Ecoa montou uma lista de grupos que estão recebendo doações para populações em situação de vulnerabilidade. O material é atualizado diariamente e conta também com apoio dos leitores, que enviam dicas de novas campanhas.

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Protestos pró-governo: bem menores, mais radicais e abertamente golpistas http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br/2020/03/15/protestos-pro-governo-bem-menores-mais-radicais-e-abertamente-golpistas/ http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br/2020/03/15/protestos-pro-governo-bem-menores-mais-radicais-e-abertamente-golpistas/#respond Sun, 15 Mar 2020 19:03:32 +0000 http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br/?p=168 O baixo comparecimento às manifestações de hoje (15/03) evidencia que o “chamado às ruas” de Bolsonaro tem atraído parcelas decrescentes da população. Espalhados por sites hiperpartidários, pelas redes de direita e pelo próprio presidente, que chegou a confraternizar com apoiadores em Brasília, fotos e vídeos mostram aglomerações bem menores do que as dos “protestos a favor” mobilizados pelo bolsonarismo em 2019 — essas manifestações, vale lembrar, já haviam sido inferiores às da campanha eleitoral e muito menores que as pelo impeachment. 

Em grupos de WhatsApp, algumas mensagens falam em sucesso (“Explodiu! Patriotas invadem Copacabana!”, diz título de vídeo no YouTube, em flagrante descompasso com as imagens aéreas da orla). Mas, com concentrações reduzidas mesmo para os questionáveis padrões bolsonaristas de compromisso com a realidade, a maioria preferiu enfatizar a “coragem”, a “desobediência civil”  e o “patriotismo” dos manifestantes, “guerreiros” que não se curvaram às “ameaças do coronavírus”, que muitas postagens reputavam como “inexistente”, “mentira” e “conspiração comunista”.

(Reprodução WhatsApp)

O temor pelo covid-19 cobrou um preço. O radicalismo, outro quinhão. Menos parlamentares tiveram postura ativa nas redes e os movimentos de maior capacidade de mobilização se ausentaram. Isso, porém, não parece ter alterado o comportamento do tipo “nuvem de gafanhoto” das facções mais radicais que hoje foram a cara das manifestações. Grupos bolsonaristas no WhatsApp são um termômetro. Protagonistas dos protestos pelo impeachment, MBL e Vem Pra Rua se afastaram do bolsonarismo e criticaram a convocação atual. Passaram a se tratados como inimigos. Nas convocações de 2019, movimentos como o Nas Ruas e Avança Brasil ganharam força. Com o coronavírus, acabaram pedindo a troca do protesto em carne e osso por manifestações virtuais. No WhatsApp, todos foram rechaçados: “vamos mostrar que o Vem Pra Rua e o Nas Ruas não mandam em nós”, dizia uma das convocações, agora assumidas por uma variedade de grupos menores.

(Reprodução Facebook)

A quantidade atordoante de mensagens é uma das estratégias. Em 29 grupos bolsonaristas que monitoro, a média foi de 232 interações entre as 10h do sábado e as 10h de domingo (houve grupos com mais de 800 mensagens diárias). A maior parte tinha os protestos como assunto. Essa avalanche, reiterada em um tempo de exposição relativamente longo — há registros de grupos de apoio a Bolsonaro já em 2014 — merece estudo quanto à influência nos processos de radicalização observados por pesquisadores como David Nemer e Isabela Kalil. 

Para os apoiadores, a concentração na Av. Paulista parece ter sido especialmente decepcionante. Circulou pelos grupos um vídeo do protesto de 7 de abril de 2019, com muito mais gente, como se fosse atual e “ao vivo”:

(Reprodução WhatsApp)

No ato de verdade, a meditação do general Heleno — “Foda-se” — virou palavra de ordem. “Foda-se o Dória! Vai tomar no cu”, gritava-se do alto da carreta do Movimento Direita Conservadora, na Av. Paulista, enquanto o orador enfatizava a necessidade de se aderir à caixinha para pagar uma suposta multa pela manifestação. “Nós não temos medo do coronavírus, nós temos medo é do comunavírus, do canalhavírus, do corruptovírus. Vocês vão se foder!”, ponderou. “Nós somos o exército do capitão. Estamos com os generais, estamos com o exército. Deus está conosco também”. 

(Reprodução WhatsApp)

Nas ruas, as mensagens em faixas e cartazes seguiam a mesma postura bélica extremada. O foco foram os representantes do Legislativo e Judiciário: “Bandidos de toga”; “políticos corruptos”; “Maia, Alcolumbre e STF estão tremendo”; “Não aceitamos poder paralelo”; “A verdade antes da paz”; “Fora STF”; “Fora Congresso”; “Fecha STF e Congresso, é muito mais barato”; “Por mais militares no poder”; “Intervenção militar já”; “S.O.S. Forças Armadas”; “Coronamaia, esse vírus mata”. Presidente do senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP) foi chamado de “comunista”:

(Reprodução WhatsApp)

(Reprodução WhatsApp)

(Reprodução WhatsApp)

(Reprodução WhatsApp)

Pautas mais republicanas, como a disputa pelo orçamento impositivo, a defesa da prisão em segunda instância e o apoio à Lava Jato estiveram presentes, mas de forma minoritária. Mesmo o PT e Lula, nêmesis do bolsonarismo, saíram do foco. Na ruas da direita, o jogo virou. O principal garoto-propaganda do golpismo antissistema é o próprio presidente. Como informa o reporter do Valor Econômico Matheus Schuch, os apoiadores se despediram de Bolsonaro hoje aos gritos de “AI-5”:

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Coronavírus: O desafio cotidiano de manter a serenidade em meio ao caos http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br/2020/03/13/coronavirus-o-desafio-cotidiano-de-manter-a-serenidade-em-meio-ao-caos/ http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br/2020/03/13/coronavirus-o-desafio-cotidiano-de-manter-a-serenidade-em-meio-ao-caos/#respond Fri, 13 Mar 2020 07:00:07 +0000 http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br/?p=158 Algo que assusta sem motivo determinado, medo súbito que pode provocar uma reação descontrolada de um indivíduo ou de um grupo. A definição do Houaiss para pânico inclui ainda reveladora etimologia: a palavra remete ao deus grego Pã, protetor dos rebanhos e pastores, a quem se atribuía os misteriosos ruídos noturnos das florestas trevosas. Nas selvas tenebrosas do Brasil dos últimos dias, Pã abandonou as matas, comprou um smartphone e hoje esfola o polegar de tanto encaminhar mensagens de conteúdo alarmista no WhatsApp sobre o coronavírus. O temor infundido por causas ocultas… esse segue o mesmo.

Não se trata de falar em “fantasia”, como fez Bolsonaro, uma absoluta impropriedade. A situação se deteriorou rapidamente e o prognóstico — que é a suposição baseada em dados da realidade — aponta para semanas, talvez meses, difíceis no Brasil com o avanço da pandemia. Tudo indica que haverá uma travessia a ser feita — e a questão parece ser como realizá-la sem desespero ou exaltação excessiva.

Há uma ligação estreita entre pânico e medo. O medo é a nossa reação a uma agressão, define o italiano Giulio Cesare Giacobbe, fundador da psicoterapia evolutiva. A coisa complica porque quem decide o que é agressão não é realidade concreta, mas nosso filtro cognitivo. Para dizer de outra forma: sentir medo ou não depende da interpretação da realidade. E isso é uma questão totalmente pessoal.

Se a agressão é real, está certo ficar com medo, pois ele nos leva a reagir. Se vejo um tigre de verdade na minha frente, corro. Mas e se o medo é imaginário, e se o tigre for de papel? Com seu estilo provocador e um tanto mal-educado, Giacobbe vai definir o medo imaginário como uma masturbação mental, nosso maior inimigo (“O medo é a única coisa que pode arruinar nossa vida maravilhosa”, diz).

Trata-se, então, de definir se o medo é real ou imaginário. “Todas as vezes que você não tem materialmente na sua frente aquilo que lhe dá medo, é um medo imaginário”, afirma Giacobbe. Convenhamos que, no caso de um inimigo invisível a olho nu como o coronavírus, essa obviedade não nos ajuda muito. O psicólogo italiano refina um pouco mais a explicação ao recorrer ao exemplo do medo de avião: é possível que o voo em que vou embarcar se espatife? Sim, é possível — mas o conjunto de coisas possíveis é infinito. “Se queremos fazer uma previsão, não devemos recorrer ao possível, mas ao provável. Como fazem as companhias de seguros. As probabilidades de queda de um avião são infinitesimais”, ressalta.

Talvez uma boa guia para manter a serenidade nos dias que virão seja uma combinação das duas definições: o que é real e o que é provável. Primeiro, o foco no provável pode ajudar no discernimento do que é realmente preciso fazer agora. Em que pese a desinformação e as fake news, há toneladas de ótimo e confiável material sobre a doença, formas de prevenção, taxas de contágio, situações de risco e grupos vulneráveis. Sabe-se que, no caso dos idosos, em que a letalidade é mais provável, faz sentido reforçar os cuidados tanto quanto possível. De outro lado, parecem pouco racionais comportamentos como acumular álcool gel suficiente para explodir a própria casa. Pouco racional e pouco solidário — um desafio extra que a pandemia já está trazendo é a reflexão sobre os efeitos coletivos de nossas ações individuais. Com suprimentos em baixa, se alguém estoca, alguém fica sem. Dilemas assim serão comuns em breve.

Segundo, o foco no real — o “momento presente”, como virou moda dizer — pode ser útil tanto para evitar checagens excessivas, alimentadas pelo catastrofismo futuro (provavelmente não precisamos estar hipervigilantes a qualquer alteração corpórea como se fosse sintoma de coronavírus) quanto na adaptação para o período que vamos passar. Quarentenas, cancelamento de atividades, home office e a nova etiqueta de higiene respiratória podem ser aflitivas, mas também nos levam à descoberta de algo novo. Sem otimismo ingênuo, porque o momento não é para isso, encerro com um exemplo pessoal. Quando meu pai adoeceu de câncer, um amigo me disse: que bom que você vai poder conhecê-lo melhor, de uma forma diferente. De fato, no meio da dor e da tristeza, que culminou com sua morte, houve também momentos (e não foram poucos) de alegria e paz durante o processo. Acho que esses momentos aconteceram porque decidimos que mesmo com a incerteza sobre a vida, ela continuaria e nós poderíamos aproveitá-la enquanto estivéssemos bem. Meu amigo estava certo.

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Com piada sem graça, cercadinho de Bolsonaro dá errado pela primeira vez http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br/2020/03/05/com-piada-sem-graca-cercadinho-de-bolsonaro-da-errado-pela-primeira-vez/ http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br/2020/03/05/com-piada-sem-graca-cercadinho-de-bolsonaro-da-errado-pela-primeira-vez/#respond Thu, 05 Mar 2020 07:00:35 +0000 http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br/?p=150 — Qual vai ser a pergunta?

— O presidente Bolsonaro que pediu para você distribuir banana?

— Não vem com esse papo, não. Foi ideia minha. Isso aqui se chama humorista. Qual a próxima pergunta? Ninguém tem pergunta? Não tem pergunta, não? Que é que houve? Não tem pergunta? Ah, não tem pergunta mesmo? Ué, mas não tem pergunta? Não tem outra pergunta lá? Não tem mesmo, não?

Conhecido como Carioca, o humorista Márvio Lúcio fez ontem uma participação especial na sitcom “Cercadinho de Bolsonaro”, estrelada e distribuída pelo próprio presidente. Gravada com claque ao vivo, a série tem como premissa distribuir ofensas à imprensa e garantir holofotes para seu protagonista, que assim garante o controle do noticiário. Apesar do enredo repetitivo ainda dar pontos no Ibope, a trama já apresenta sinais de desgaste. Ontem, pela primeira vez, o roteiro não funcionou — como se vê na íntegra compartilhada no Twitter presidencial sob o título “Bolsonabo no Alvorada!”:

A audiência sabe que está diante de uma chanchada. Com a palhaçada, o gênero perdeu qualquer verniz de sofisticação: escancarou-se a farsa do cercadinho como forma de desviar a atenção de assuntos importantes que o mandatário não tem interesse ou preparo para abordar. A máscara tosca caiu de vez porque o tema de ontem era impossível de driblar: o raquítico crescimento de 1,1% do PIB em 2019, o menor em três anos. O assunto obviamente exigiria explicações. Coube a um presidente — no caso, o clone bufão — fornecê-las, a pedido do bufão oficial. O diálogo é surreal (minuto 4:59):

[Bolsonaro] — PIB? O que é que é PIB?

[Carioca] — Paulo Guedes, Paulo Guedes.

[Bolsonaro] — Posto Ipiranga.

[Carioca] — Posto Ipiranga, posto Ipiranga.

[Bolsonaro] — Outra pergunta.

[Carioca] — Outra pergunta, outra pergunta. 

A direção da tragicomédia também já não se preocupa em disfarçar que o casting obedece a conveniências. Carioca chegou acompanhado de Fabio Wajngarten, chefe da Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom). Seu papel no elenco é simples de entender: ele é a personificação do conflito de interesses, operando nos dois lados do balcão. Numa ponta, decide para onde vai a verba publicitária do governo — emissoras de TV, por exemplo. De outro, como principal sócio de uma empresa de consultoria, recebe dinheiro das mesmas TVs que ele contrata na Secom. 

Bolsonaro de mentirinha é a mais nova estrela da Record, canal atendido pela firma de Wajngarten. A participação da emissora de Edir Macedo no bolo publicitário da União na TV aberta saltou de 26% para 42% entre 2017 e 2019. Outra coirmã, o SBT, cliente do chefe da Secom até 2019, ampliou sua fatia de 25% para 41%. Nomes e siglas acabaram confundindo Bolsonaro na hora de explicar à claque qual das emissoras amigas transmitiria sua participação como coadjuvante de esquete humorística (minuto 5:46):

SBT? SBT? Record! Domingo Espetacular!

A grande falha de continuidade, porém, veio pela recusa dos “escadas” em preparar a piada para o palhaço. Diante dos jornalistas, Márvio Lúcio tenta distribuir bananas. Ninguém pega. Em seguida, pede que lhe façam perguntas. Recebe apenas uma, indagando se a palhaçada era ordem de Bolsonaro. Responde atravessado e espera que venham outras. Não vêm: alguns jornalistas dão as costas, e o que se segue é o constrangedor monólogo que abre esse texto. Falando sozinho, o humorista tenta brincar com os microfones, saúda a CNN Brasil, ameaça ir embora. O embaraço é tão evidente que nem mesmo a sempre zelosa claque se dispõe a rir. Carioca sente na pele que não existe humor “a favor”. A graça é, por definição, do contra, adversária do poder. 

Pela primeira vez, ainda timidamente, os profissionais da imprensa recusam fazer parte do circo presidencial. Não há mais perguntas nem para o humorista nem para o presidente. Referência incontornável da sociologia, o alemão Norbert Elias (1897-1990) analisa as relações de poder com a noção de “força relativa”: “Quem tem maior potencial de reter aquilo de que o outro necessita? Quem, por consequência, está mais ou menos dependente do outro? Quem, portanto, tem que se submeter ou se adaptar mais às exigências do outro?”. Desse ponto de vista, não existe dominação absoluta. Os dominados guardam sua dose de poder, e também são capazes de reagir. Prenúncio de turning point? Fim de temporada para o cercadinho? Que venham os próximos capítulos.

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Campanha da Uber por respeito é só fantasia de Carnaval http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br/2020/02/20/campanha-da-uber-por-respeito-e-so-fantasia-de-carnaval/ http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br/2020/02/20/campanha-da-uber-por-respeito-e-so-fantasia-de-carnaval/#respond Thu, 20 Feb 2020 07:00:28 +0000 http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br/?p=145 Neste Carnaval, o Uber pôs o bloco na rua com uma campanha, segundo a empresa, para “reforçar o respeito”. Por meio de outdoors, anúncios digitais e mensagens aos usuários, pretende atacar o assédio e a discriminação. Reforça que esses comportamentos não são aceitos pelo código de conduta da empresa.

São causas inegavelmente justas as chamadas pautas identitárias. Ocorre o seguinte: aprende-se basicamente pelo exemplo. De nada valem palavras bonitas e defesa eloquente de bandeiras corretas se suas práticas não condizem com o que você prega. Respeito é precisamente o que falta na relação da Uber com seus “motoristas parceiros”.

O eufemismo merece aspas porque designa, na verdade, trabalhadores e trabalhadoras em jornadas muitas vezes estafantes, sem que se reconheça qualquer vínculo empregatício por parte da empresa. 

À espera de que o algoritmo lhes atribua alguma corrida, boa parte tem metas — muitas vezes inatingíveis — a bater. Todos se submetem à avaliação do consumidor, com estrelinhas que supostamente aferem a qualidade do serviço, incluindo carro, condutor e forma de dirigir. Se houver benevolência, pode-se dar gorjeta.

A sharing economy poderia ter incentivado a solidariedade e o compartilhamento. Mas num contexto de crise em que ser empreendedor de si mesmo é o único trabalho disponível, o resultado é um misto de baixos salários, rotinas estressantes, culto à performance e um esgarçamento das relações de trabalho simbolizada em uma palavra que, não por acaso, recebe o nome da empresa: uberização.

A Uber diz que não tem nada com isso. Escorada no argumento da neutralidade da tecnologia, afirma que o aplicativo nada mais faz do que “possibilitar bilhões de conexões entre pessoas no mundo todo”.

Faltou dizer: cobrando uma taxa variável que pode superar 25% por corrida. E sem assinar carteira, depositar FGTS, férias, 13º salário e outros direitos de empregados.

Sim, empregados. Porque estipular um preço pelo serviço, controlar a jornada de trabalho do “colaborador” via algoritmos e punir supostas falhas configura vínculo empregatício. De acordo com alguns tribunais no Brasil, Europa e Estados Unidos, essa é uma leitura possível, embora não seja o entendimento do Tribunal Superior do Trabalho por aqui.

No jargão do marketing, o termo brandwash (literalmente, “lavagem de marca”) designa mudanças cosméticas — nome, cor, logotipo, campanhas institucionais etc. — levadas a cabo pela publicidade para desviar o foco de problemas anteriores da organização. Parece ser o caso em tela, e longe de ser exceção.

No mundo em que o que importa é a fantasia, o cortejo é volumoso: quem combate a obesidade é o McDonalds, quem incentiva a parar de fumar é a Philip Morris, quem fala de educação financeira são os bancos, quem ensina sobre respeito é a Uber. Na vida real, ajustar as práticas aos discursos dá muito mais trabalho.

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As humilhações de Bolsonaro vão continuar; e temos culpa nisso http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br/2020/02/18/as-humilhacoes-de-bolsonaro-vao-continuar-e-temos-culpa-nisso/ http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br/2020/02/18/as-humilhacoes-de-bolsonaro-vao-continuar-e-temos-culpa-nisso/#respond Tue, 18 Feb 2020 13:49:10 +0000 http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br/?p=139 Liturgia do cargo é a expressão que indica o comportamento que se espera de ocupantes de postos públicos. Em tese, deve-se primar pela ética e pela urbanidade, não apenas por respeito à população, mas também pelo fato de a visibilidade conferir ares de modelo de conduta aos comportamentos. Como se sabe, o conjunto das palavras, formas e gestos que hoje compõem a liturgia presidencial mudou radicalmente. Como acabou a mamata da boa educação, hoje vale fazer banana para repórter, mandar calar a boca ou perguntar para a mãe, dizer que algum profissional não tem vergonha na cara, que parece um homossexual terrível. A mais recente, de hoje de manhã: “Ela queria dar o furo a qualquer preço contra mim”, insinuação de cunho sexual contra a repórter Patrícia Campos Mello.

O palco de boa parte do festival de ofensas do presidente Jair Bolsonaro é o já infame “cercadinho do Alvorada”, área restrita em que os jornalistas ficam confinados à espera de alguma declaração presidencial. Ao lado, posiciona-se uma claque de apoiadores, algo como uma turma da 5a série que só falta — às vezes não falta — urrar quando um valentão humilha alguém na sala.  

É possível vasculhar arquivos e ver se algo de útil, em termos de interesse público, saiu das interações nessas condições. Duvido. O que fazer? 

Bolsonaro está na dele. Desde os tempos de deputado, quando buscava o choque como forma de notoriedade, soube jogar o jogo da espetacularização. Suas falas preconceituosas — “corajosas!”, para os apoiadores incondicionais — rendiam entrevistas e uns pontinhos a mais para programas trash de auditório. Em entrevistas antigas, ele próprio admite que só assim ganhou notoriedade. Como presidente, não mudou. Conheço gente indignada por parte da população não respeitá-lo como ocupante legítimo do cargo máximo da nação. O pedido é delicado: como respeitar uma figura que não se dá ao respeito? 

É possível pensar nos repórteres. Por que se submetem às ofensas? O medo é um grande indutor. Xingar o presidente pode caracterizar injúria, crime que, em tese, levaria à prisão (algo raríssimo, mas gente, é Bolsonaro). De todo modo, é possível ser firme sem perder a fleuma (“presidente, o senhor está faltando com o respeito”, “não agrida quem está trabalhando”, “um pouco mais de educação, por favor”, “essa resposta não convida ao diálogo”). 

Há uma outra fonte de temor: o de perder o emprego. Jornalistas são empregados e, como tal, cumprem ordens de seus empregadores. Justiça seja feita: há perguntas incômodas — para isso os profissionais são pagos — que não deixaram de ser elaboradas por conta dos xingamentos. Nesse nível, a intimidação parece não estar funcionando. 

Mas a obviedade do “tenho de ir” é, como disse, apenas aparente. Como classe, os jornalistas poderiam se recusar, por meio de uma decisão coletiva, a passar pelos perrengues impostos pelo Planalto. Mas parece que estamos falando de um passado distante em que o individualismo absoluto não era a norma. No caso dos jornalistas, categoria tradicionalmente atomizada, talvez estejamos falando de uma ficção. Ou não: o jornalista Alberto Villas relembra episódio semelhante, em janeiro de 1984, no governo Figueiredo, quando os repórteres fotográficos deixaram suas câmeras no chão quando o presidente — outro grosseirão — passou diante deles. Era um protesto pelo péssimo tratamento. 

Mas há outros complicadores.

Primeiro a própria natureza do jornalismo. Trata-se de uma profissão eminentemente concorrencial. A busca pela informação exclusiva, é um dos imperativos da profissão. É possível que viva em alguns a esperança de que algo relevante saia do circo do cercadinho. Ou o temor de que estarão perdendo alguma coisa caso se ausentem da cobertura. Exceto para os catalogadores de ofensas, não é o caso até agora. Ainda assim, a sede pelo furo tem sido maior que a solidariedade de classe. 

Segundo, como diria Garrincha, é preciso combinar com os russos. Qual proprietário dos grandes veículos de mídia estaria pronto para ignorar o circo? Bolsonaro e companhia dão audiência. Também foram hábeis em criar — não há exagero na palavra — um império de comunicação, composto de sites hiperpartidários, grupos públicos de WhatsApp, perfis políticos de grande alcance e veículos aliados na mídia tradicional. De olho em influência e verba publicitária governamental, emissoras como SBT e Record estreitaram a proximidade com o governo e hoje o cobrem de maneira acrítica, francamente favorável. Estariam no cercadinho — que, na ausência de quem o presidente trata como inimigo, talvez até ganhasse alguns mimos. 

Terceiro, e aí entramos nós: o que os veículos de mídia vendem são eyeballs, nossos olhos, que não resistem a uma espiadinha na última grosseria do capitão. É a dissociação clássica entre interesse do público — aquilo em que a audiência efetivamente consome, vê, escuta e clica — e o interesse público — ligado ao papel da mídia de divulgar informação relevante para o bem-estar de uma coletividade. A verdade é que, por um misto de esperteza e falta de repertório, Bolsonaro seguirá sendo o bufão histriônico do Superpop de Luciana Gimenez. Isso dá audiência.

É conhecida a imagem da imprensa como watchdog, o cão de guarda que fiscaliza os passos dos poderosos e sinaliza os malfeitos. Habilmente, mandatários midiáticos e populistas como Bolsonaro têm conseguido enlouquecer o cachorrinho, fazendo-o perseguir o próprio rabo. A respeito dos tuítes de Donald Trump, um mestre em agendar a pauta da imprensa, o jornalista Tom Rosenstiel, autor e diretor do American Press Institute, declarou: “Precisamos de jornalistas para cobrir o que é importante, não para latir para todos os carros.” É bem mais fácil falar do que fazer: o problema é complexo, dá para repartir responsabilidades entre vários atores. Um ação coordenada entre eles parece fora de perspectiva. Enquanto isso, o humilhante cercadinho de Bolsonaro reinará.

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Caso Patrícia: 20 estratégias bolsonaristas de difamação http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br/2020/02/13/caso-patricia-20-estrategias-bolsonaristas-de-difamacao/ http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br/2020/02/13/caso-patricia-20-estrategias-bolsonaristas-de-difamacao/#respond Thu, 13 Feb 2020 16:32:11 +0000 http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br/?p=134 Convocado a uma CPMI no Congresso, um cidadão enfileira mentiras e ofensas públicas contra uma jornalista. Não apresenta qualquer prova do que diz, mas isso não importa: seu testemunho é o suficiente para pôr em marcha uma máquina de destruição de reputações, mobilizada por apoiadores diretos do presidente Bolsonaro e alimentada por engodos e malabarismos de linguagem. 

O surrealismo é enojante, e a sensação de impotência, paralisante. Estratégias como a checagem de fatos têm se mostrado pouco eficazes — vivemos numa época pouco afeita ao racionalismo. De todo modo, ainda são um serviço de inestimável valor — e serão mais ainda no dia em que as pessoas hoje envoltas numa espécie de emocionalismo hipnótico começarem a cair em si. Também parece importante desvelar, mesmo correndo o risco de certa repetição, as falácias de lógica e de retórica utilizadas por essa turma. 

O episódio de ataque à jornalista Patrícia Campos Mello mobilizou uma série delas. Investigo o WhatsApp de mais de 30 grupos bolsonaristas. Entre ontem e hoje, recolhi dezenas de peças ofensivas à repórter e procurei analisar os recursos discursivos mobilizados. Contei 20, expostos abaixo. Em respeito ao leitor e à leitora e, principalmente, às vítimas, não incluí neste texto imagens ou links para os ataques virtuais. Tenho, caso seja necessário, os prints arquivados para documentação:

1- Mentira A mãe de todas as táticas. Na condição de testemunha da CPMI, Hans Nascimento, ex-funcionário da agência de marketing digital Yacows, mentiu à CPMI. Está sujeito a representação no Ministério Público por falso testemunho. Em reportagem, a Folha de S. Paulo desmentiu rapidamente as alegações e insultos, com extensa documentação comprobatória (vídeos, prints de Whastapp, planilhas enviadas pelo depoente etc.).

2- Apelo à emoção Os desmentidos surtem pouco efeito na base de apoio bolsonarista. Num cenário de polarização, sabe-se que as paixões e preferências subjetivas têm mais importância na formação de opiniões e tomadas de decisão do que os fatos concretos. Essa é, aliás, a definição de pós-verdade. Com os sentimentos à flor da pele, é mais fácil que as pessoas se tornem “presas fáceis até de um trapaceiro pouco inteligente”, como nos lembra Carl Sagan, um dos mais célebres divulgadores da ciência, no livro O Mundo Assombrado pelos Demônios.  

3- Argumento de autoridade Numa ação aparentemente orquestrada, as mentiras e insultos de Hans Nascimento foram prontamente replicadas por parlamentares a suas bases digitais. A mais visível dessas figuras, como se sabe, é Eduardo Bolsonaro, deputado federal e filho do presidente. Mas houve peças assinadas por outros personagens, como os deputados federais Paulo Eduardo Martins (PSC-PR), Carlos Jordy (PSL-RJ), Filipe Barros (PSL-PR) e subtenente Assis (PSL-ES, candidato derrotado ao senado). O recurso à autoridade tenta conferir alguma credibilidade à fala do depoente. O raciocínio é: “se um deputado falou, deve ser verdade”.

4- Obediência ao líder A ação conjunta dos replicadores apresenta poucas fraturas. Muitos dos vídeos e memes disseminados em diferentes perfis são os mesmos. O ponto de contato é a construção de uma narrativa de apoio ao presidente Jair Bolsonaro – nessa chave de leitura, a reportagem de Patrícia Campos Mello seria uma “acusação mentirosa a JB”, como escreveu no Twitter o filho Eduardo. Não há espaço para críticas: a lealdade ao líder precisa ser incontestável, como pede o manifesto do futuro partido do clã, o Aliança pelo Brasil.

5- Evidência suprimida Construção estilística em que um elemento importante para a comprovação da veracidade está ausente. Um card do movimento Avança Brasil traz o seguinte texto (a grafia original foi mantida): “MULHERES JORNALISTAS ASSINAM MANIFESTO EM APOIO A REPÓRTER DA FOLHA INSULTADA NO CONGRESSO. AGORA FALAR A VERDADE VIROU INSULTO!”. Faltou dizer que a “verdade”, no caso, é a falsa acusação sexista, o que invalida a afirmação.

6- Mobilização de preconceitos O caldo de cultura da sociedade é repleto de manifestações como misoginia, racismo e homofobia. O medo é um poderoso mobilizador desses preconceitos arraigados, convocados sobretudo em momentos de crise, como lembra a psicóloga Vera Iaconelli: “Quanto tempo desperdiçado, quando estrago — por vezes irreparável — se dá quando nos deixamos levar pela emoção sem a mínima reflexão”. 

7- Misoginia O ódio, desprezo ou preconceito contra mulheres emergiu com toda a força em cards espalhados pelo WhatsApp, que qualificavam a jornalista da Folha como “prostituta” ou “puta”, sem meias palavras. Uma realidade cotidiana que ganha contornos amplificados com a sessão pública no parlamento, como afirma Mariliz Pereira Jorge: “Assédio sexual e moral e insultos são expedientes comuns em nossas vidas. Todo dia alguém nos chama de puta, mas não no Congresso”. Patrícia só sofre essa natureza de ataque porque ser mulher.

8- Ridicularização A zombaria e exposição de uma pessoa ao ridículo incluiu, no caso de Patrícia, humor chulo e manipulação de imagens. Cards no WhatsApp trouxeram fotos da jornalista gritando, fazendo careta ou em montagens como garota de programa. Trocadilhos maldosos com a palavra “furo” também foram constantes.

9- Falsificação histórica Pedra angular do bolsonarismo, a cruzada contra a imprensa recebeu uma bizarra releitura num post no WhatsApp com o seguinte teor: “não é só a repórter da Folha que já se envolveu com prostituição, o jornalismo brasileiro infelizmente é farto nesses exemplos”. Segue-se uma lista de “casos”, todos oriundos de acusação sem provas, destinados a “provar” o suposto pareamento entre jornalismo e prostituição. Como afirma o historiador Fernando Nicolazzi, da UFRGS, a intenção de reescrever a história costuma ser frequente em projetos totalitaristas de poder.

10- Intimidação Não são poucas as pessoas que se calaram depois de campanhas difamatórias. O chamado “assassinato de reputação” visa tirar pessoas da arena pública por medo de represálias, sejam virtuais ou reais. Patrícia vem sendo alvejada por “tempestades de merda” (ver item 20, “shitstorm”) desde a divulgação das reportagens sobre envios maciços de WhatsApp contra o PT, em 2018. Até agora, mantém-se firme. Outros menos resilientes ou experimentados já poderiam ter saído de cena ou adoecido. Novamente, como explica Mariliz Pereira Jorge em sua coluna na Folha: “Dizer que uma jornalista ofereceu sexo em troca de informação é uma violência, uma tentativa de intimidar e calar não apenas ela, mas todas nós que trabalhamos na área”. 

11- Cortina de fumaça A ideia é usar um assunto para desviar a atenção de outro, mais grave e importante. O debate político registra o uso cada vez mais comum do termo inglês fire hosing, que designa uma grande quantidade de mensagens transmitida rapidamente sem que se considere sua consistência ou veracidade. Conforme registra Roberto Dias em sua coluna na Folha de S. Paulo: “Se alguém enxergar aqui uma estratégia de comunicação, poderá concluir que a mentira de Hans tira do foco a busca pela verdade sobre a morte do miliciano Adriano [Nobrega, ligado a Flavio Bolsonaro]”.

12- Ad hominem A expressão latina indica a conhecida tática de atacar o argumentador, não o argumento. A série de reportagens que revelou os disparos em massa contra o PT pelo WhatsApp se sustenta pelas evidências documentais e pela multiplicidade de fontes entrevistadas. Em vez disso, o que foi colocado em questão na campanha difamatória era a personalidade da jornalista, como no seguinte texto de card (a grafia original foi mantida): “CONTRATAR MILITANTES E JUMENTOS PARA ESPALHAR MENTIRAS, JÁ É VERGONHOSO, MAS LEVAREM JORNALISTA A AGIREM NESSE NÍVEL, É O FIM!!!”.

13- Seleção das observações Tática conhecida e utilizada sobretudo em vídeos no Youtube, consiste em escolher trechos que visam favorecer um personagem e prejudicar outro. O filósofo Francis Bacon nomeou essa estratégia como “contar os erros e esquecer os fracassos”. A sessão da CPMI foi resumida em vídeos editados como “Hans River desmontando a narrativa da esquerda” ou “A esquerda passou vergonha”.

14- Dissonância entre título e vídeo Variação da falácia anterior, ocorre quando atribui-se um título bombástico (“Deu PT na CPI das fake news”) a um conteúdo como a íntegra do depoimento. Aposta-se que a maioria dos internautas não vão assisti-lo, contentando-se apenas com a chamada principal.

15- Sensacionalismo Uso de termos, construções textuais, visuais ou sonoras para exagerar a cobertura de determinado assunto, com o objetivo de chocar a opinião pública e, assim, ampliar a audiência. São exemplos o recurso a palavras fortes, letras maiúsculas, expressões bombásticas e exclamações. Em vídeos no youtube, o depoimento de Hans Nascimento recebeu os seguintes títulos (a grafia original foi mantida): “URGENTE! Ex-funcionário mostra como funcionava o esquema para o PT de ROBÔS PARA MENSAGENS EM MASSA”.

16- Exemplar saliente Consiste em destacar um exemplo aberrante, fora da curva, e apresentá-lo como se fosse o comportamento médio ou representativo de um grupo. O site Senso Incomum apresenta texto atribuído a Carlos de Freitas, aparentemente de caráter humorístico (ainda que não haja qualquer indicação explícita dessa natureza, o que mascara a intenção do emissor): “Jornalismo da Folha é tão verdadeiro quanto tênis Mike vendido na 25 de março, diz leitor”. O “leitor” em questão contrasta, por exemplo, com a ampla maioria de opiniões contrárias ao ataque e em defesa da reportagem apresentadas no Painel do Leitor de hoje.

17- Inversão do ônus da prova  Ocorre quando quem acusa não prova o que afirma. Ao contrário, exige que a vítima negue a afirmação. O título de texto do site ‘presidentebolsonaro.com’ (“Jornalista ofereceu sexo em troca de informações para matéria contra Bolsonaro durante campanha”) se aproveita dessa estratégia — e ainda omite que se trata de depoimento sem evidências (na verdade, invalidado pelas evidências) e não de verdade inconteste.

18- Distorção Na sessão, Hans Nascimento acusou Rui Falcão (PT-SP) de racismo, ao supostamente tê-lo chamado de “favelado”. A menos que houvesse registro do diálogo, que Hans classificou como “conversa ao pé do ouvido”, a afirmação é impossível de ser testada (ver item 17, “inversão do ônus da prova”). O petista precisou se defender: “Eu não chamei o depoente de favelado, não o discriminei, perguntei onde morava. ‘Leopoldina do Rio ou de São Paulo? Você conhece outros bairros da periferia onde eu fiz campanha?”. A negativa não impediu que se produzisse vídeo no Youtube com o título “Ex presidente do #PT, Rui Falcão, chama depoente de favelado”. 

19- Mover a trave Falácia explicada pelo jornalista Pedro Burgos em um fio no Twitter, consiste em ir mudando o foco da discussão (“mover a trave”) até que o adversário possa dizer que “marcou o gol”. Burgos exemplifica: a bolha bolsonarista começou comprando a acusação misógina. Com o desmentido, passou a dizer que as provas que a Folha apresentou em reportagem eram forjadas. Houve novo desmentido, e o debate derivou para uma suposta falta de provas em outra reportagem — a original, de 2018.

20- Shitstorm Literalmente, “tempestade de merda”, na expressão do filósofo Byung Chul-Han no livro No Enxame. Consiste em “chamar à ação”, como se diz nos meios digitais, uma horda para agendar determinado tema. Em geral a operação envolve ataque a alguma personalidade e se materializa com hashtags. Entre ontem e hoje, circulou nos grupos bolsonaristas o seguinte chamado (a grafia original foi mantida): “URGENE! CORRUPTOS ESTÃO APAVORADOS. SUBIR JÁ! TAG #PTusouWhatsappemCampanha. COPIE e COMPARTILHE NO GRUPOS E REDES SOCIAIS”.

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Guia das escolas cívico-militares enfatiza submissão http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br/2020/02/03/guia-das-escolas-civico-militares-enfatiza-submissao/ http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br/2020/02/03/guia-das-escolas-civico-militares-enfatiza-submissao/#respond Mon, 03 Feb 2020 17:41:44 +0000 http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br/?p=131 Revelado hoje pela Fiquem Sabendo, agência de dados independente especializada na Lei de Acesso à Informação (LAI), o manual das escolas cívico-militares já está sendo distribuído pelo Ministério da Educação às secretarias que aderiram ao programa conjunto do MEC e Ministério da Defesa.

Comparado ao barulho na comunicação, o alcance da iniciativa é irrisório: 54 escolas por ano até 2023. O Brasil, vale lembrar, tem cerca de 180 mil escolas.

Com 324 páginas, o manual reúne 11 documentos, do regulamento das escolas às normas para uso de uniformes. Há inspiração em propostas de colégios militares já existentes, geridos pelas Forças Armadas, Corpo de Bombeiros ou Polícias Militares. O MEC diz que o manual foi construído “democraticamente” junto com representantes das redes municipais e estaduais. Não detalha quem, quando, onde e como.

A recorrência de termos no documento dá pistas das inclinações e intenções. De um lado: disciplina (127 aparições), uniforme (115), respeito (81), transferência compulsória (sinônimo para expulsão, 17), civismo (13), cabelo (12), bandeira (11). De outro: pobreza (0), democracia (1), gênero (1, mas alimentício), racismo (2), desigualdade (3, nunca a social), justiça (5).

Nas escolas cívico-militares, a gestão é compartilhada. Junto a diretor, vice e secretaria, um “oficial de gestão escolar” faz parte da cúpula da administração. “Monitores”, também militares, zelam pela disciplina no ambiente. Devem ser chamados por sua patente pelo alunado. Se não souberem, por sua função.

Os aspectos folclóricos são conhecidos. Hastear a bandeira, cantar o hino, cortes de cabelo pré-determinados, uniforme (incluindo boina) asseado e completo. Defende-se, por associação automática sem argumentação consistente, que tais posturas incentivam “amor à pátria” e “sentimento de pertencimento a um país”. É possível fazer tudo isso e abominar tais valores. Ou o contrário: nada fazer (o uso recente da bandeira e do hino tem provocado repulsa em muita gente) e cultivá-los.

O modelo é conhecido. Recorre-se a uma forma de ensino concebida com a massificação do ensino há 200 anos, pautada pela autoridade incontrastada do professor, do diretor, dos membros militares. Adicionam-se valores das corporações militares – disciplina, respeito e civismo. Obtém-se uma forma escolar em que a submissão é, a um só tempo, o objetivo principal e a melhor forma de sobreviver dentro da instituição.

As referências pedagógicas consistentes estão ali – a palavra autonomia aparece 14 vezes –, mas sua utilização parece meramente cosmética. Fala-se em “pluralismo pedagógico”. Mas como imaginar a pedagogia individualizada proposta por Perrenoud quando se defende a uniformização de condutas? Como contemplar a afetividade na educação, como pede Wallon, se o comportamento é medido numericamente na forma de estímulo-resposta?

Sim, é isso mesmo. Cada aluno começa o ano com uma “nota de comportamento” igual a 8,0. Uma repreensão, por exemplo, tira 0,30. Já um elogio coletivo adiciona 0,10, e se for individual, melhor ainda: tome 0,30 na nota (“a concessão de elogio é prerrogativa do gestor competente”). Mas, cuidado: se no fim do ano a nota cair abaixo de 2,99, o estudante estará expulso por mau comportamento.

Essa é uma prática que só existe na escola, sem dialogar com a vida social. Ou você tem aí na sua carteira um boletim dizendo se seu desempenho na vida cotidiana foi “excepcional”, “ótimo”, “bom”, “regular”, “insuficiente” ou “mau”?

Quando surgem conflitos, sugere-se que se recorra primeiro a um professor, mas a intervenção militar não está descartada. A família também pode contribuir – mas a seção dedicada a ela é exemplar: pode contribuir desde que apoie o projeto da escola.

Pode-se dizer que essa forma de ensino dialoga com o desejo de parte da sociedade. Cansados da violência, imaginam encontrar nos apelos à ordem uma saída. Pode ser. A repressão tem, sim, seus efeitos. E dialoga com uma perspectiva bem brasileira de atribuir as responsabilidades por sucessos e fracassos a terceiros, em vez de tomar o destino com suas próprias mãos, por mais desafiador que isso possa ser – e é.

Só não se pode dizer que essa seja uma alternativa educativa. Em sentido amplo, a educação conduz à autonomia e à autoconstrução de conhecimentos. Como fazer isso em instituições em que é considerada uma falta comportamental desafiar as pessoas? Aliás, a definição de “desafiar” não seria propositalmente vaga?

Uma última observação: aos filhos das classes altas, as boas experiências de gestão participativa e de educação libertadora estão disponíveis e são valorizadas. Já escrevi anteriormente neste espaço sobre as ótimas experiências de educação democrática também nas redes públicas. Mas, aos filhos das classes populares (subtexto: sem valores, de famílias “desestruturadas”), recomenda-se a educação militar. A opção é tudo, menos pedagógica.

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“A esquerda, hoje, não tem bandeira”, diz Cristovam Buarque http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br/2020/01/28/a-esquerda-hoje-nao-tem-bandeira-diz-cristovam-buarque/ http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br/2020/01/28/a-esquerda-hoje-nao-tem-bandeira-diz-cristovam-buarque/#respond Tue, 28 Jan 2020 07:00:31 +0000 http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br/?p=124 Cristovam Buarque acha que a esquerda levou a direita ao poder. Esse é o título em inglês do livro Por que Falhamos – o Brasil de 1992 a 2018, um arrazoado de 24 equívocos dos setores que ele classifica como “democrático-progressistas”. A denominação é polêmica. Abrange cinco presidentes anteriores a Bolsonaro, de Itamar a Temer – e inclui políticos como Cristovam. Mesmo votando a favor do impeachment, da PEC do Teto e da reforma trabalhista, o ex-senador, ex-ministro da Educação e candidato derrotado a presidente se considera uma pessoa de esquerda.

“Defendo que o filho do pobre e o filho do rico estude na mesma escola. Pra mim, isso é ser de esquerda: defender a igualdade e o direito de cada um desenvolver o seu intelecto, que é o capital do futuro”. Também a primeira pessoa do plural no título é confusão garantida. ”Ninguém aceita o ‘nós’. O PT diz que o culpado foram os golpistas. O PSDB diz que o culpado foi o PT”.

Aos 76 anos, convidado pela Unesco para compor um grupo sobre o futuro da educação, Cristovam não pensa em disputar novas eleições. “A gente nunca pode dizer que é impossível, mas eu não vejo como eu terei motivação pra isso”. Na entrevista concedida por telefone ao blog, os assuntos vão de Lula à economia como área técnica, passando por Tabata Amaral e a necessidade de uma nova utopia. Confira os principais trechos:

Seu livro recém-lançado aponta os erros dos progressistas que não apresentaram alternativa a Bolsonaro. O senhor tentou a reeleição ao senado em 2018 e não conseguiu. Onde o senhor errou?

Cristovam Buarque As pessoas queriam mudar. Num corpo a corpo na cidade de Taguatinga, aqui no DF, um homem se aproximou e disse que eu era o melhorzinho dos candidatos. Fiquei muito orgulhoso. E aí falou: “Mas eu não vou votar em você, não”. Ele disse que queria outro e que eu já estava há muito tempo ali. A minha derrota foi um pouco a prova da rejeição a esse bloco [progressista].

O senhor chama a fase da República que vai de 1992 a 2018 de democrático-progressista ou “República dos Sonhos”. O que houve de democrático, progressista ou sonho no governo Temer?

O que caracteriza os cinco presidentes do período [Itamar, FHC, Lula, Dilma e Temer] é que todos eles lutaram contra a ditadura. Eles têm idéias progressistas em relação aos costumes e defendem um certo nível de atendimento social. O Temer continuou todos os projetos sociais. Você pode dizer que, do ponto de vista econômico, ele era neoliberal. Mas o [Henrique] Meirelles foi ministro da economia com o Temer e presidente do Banco Central com o Lula. A política econômica foi a mesma, salvo durante alguns anos da Dilma em que houve um relaxamento do equilíbrio fiscal. Temer era vice da Dilma. Fazia parte desse bloco. Duas vezes foram pedir voto dizendo que ele era um homem preparadíssimo para assumir a Presidência da República. 

Mas o senhor não considera que houve uma inflexão do governo Dilma para o governo Temer? A reforma trabalhista, por exemplo. Os críticos vão dizer que retirou direitos dos trabalhadores.

Descrevo no livro um erro que chamo de “horror às reformas”. A realidade as exige. O mundo mudou. Com a globalização, nenhum país hoje tem o poder de mexer na economia como quiser. Nenhum. Nem salário, nem taxa de juros, nós estamos todos ligados internacionalmente. Não se pode ficar com uma lei trabalhista de 1942. Não se pode ignorar a automação, a robótica, a inteligência artificial. E tem de ter reformas. Não fizemos antes [a reforma trabalhista] por causa de outro erro: ficamos prisioneiros das corporações. Em vez de fazer o que o povo precisava para o futuro, fizemos o que os sindicatos queriam. Só que sindicato não defende o povo, defende trabalhador associado. Quem defende o povo são os partidos, não os sindicatos. 

Pensando no conjunto das reformas Previdenciária e Trabalhista, a conta foi dividida de forma justa? Houve combate a privilégios?

Nós não tocamos em privilégios nem em mordomias. Mas deixar como estava seria pior. Por exemplo: o trabalho intermitente. Não é uma coisa que a gente queira, mas não trazer essa possibilidade no mundo de hoje não é viável. Não somos a Coreia do Norte. Lá, eles fazem a política trabalhista que quiserem. Nós não podemos, porque aqui, se a gente começar a ter mecanismos que fazem o trabalho muito caro numa empresa, ela vai para o Paraguai ou até para a China. E nós não temos como impedir.

Sua fala e alguns trechos do livro soam bastante fatalistas.

O que você chama de fatalismo – que não é uma palavra ruim, mas eu não uso – eu chamo de realidade histórica. No mundo atual, há uma falta de independência, ou uma interdependência. Até uma coisa simples como esta nossa conversa telefônica pode desaparecer se decidirmos ser totalmente independentes. Não só porque o aparelho que a gente está usando é importado, como porque a gente não controla os satélites lá de fora. As esquerdas tem que entender essa interdependência e as limitações que ela impõe ao poder político.

O senhor votou a favor do teto de gastos defendendo que ele não travaria os recursos da educação, apenas o orçamento geral. Na prática, a educação não recebeu mais dinheiro. O teto de gastos aumentou a desigualdade? 

O teto é uma regra da aritmética. É possível gastar mais do que se arrecada? Não. Acho que nós de esquerda, sobretudo os sindicatos, não queremos brigar para tirar dinheiro de nenhum outro setor. Aí, nós reivindicamos, não lutamos. A esquerda brasileira não luta, ela reivindica. Ela quer gastar a mais na educação sem tirar de lugar nenhum.

Mas tirar de onde se os principais gastos do governo são saúde, educação e Previdência? 

Nós aqui perdemos dinheiro com corrupção, com obras desnecessárias. O Brasil quer fazer Copa, Olimpíadas e escola. Não dá. Tem que escolher, ou estádio ou escola. Ou os juízes, os deputados e senadores com essas mordomias todas, ou o professor ganhando mais. 

A crítica ao discurso anticorrupção é que, mesmo cortando todos os desvios e privilégios, a conta não fecha para conseguir educação de qualidade.

Só corrupção do comportamento, do roubo, não mesmo. Mas combatendo a corrupção das prioridades, a conta fecha. O Brasil é um país que tem um PIB de mais de 6 trilhões de reais. Não é para já, mas dá para chegar à escola ideal em 30 anos. O Brasil precisa gastar 15 mil reais por aluno [nota da reportagem: em 2018, gastou 3,3 mil reais em média, considerando as séries iniciais nas zonas urbanas]. Isso permitiria pagar 15 mil reais por mês ao professor [nota: o piso do magistério em 2020 será de 2.557,74 reais]. Se o PIB do Brasil crescer 2% ao ano, vamos precisar de uma fatia de 6,5% do PIB para a educação. Hoje, já investimos 5%. 1,5% tem de onde tirar.

Qual o maior erro do grupo que o senhor chama de democrático-progressista?

O maior erro nosso foi não ter uma utopia, não ter uma proposta de longo prazo. Nós perdemos a eleição e não deixamos uma bandeira. Além de tirar o Bolsonaro, qual é a nossa bandeira? Voltar à Previdência de antes? Voltar às leis trabalhistas de antes? Antigamente, era estatizar a economia. Não é mais. Era igualdade plena. Não é mais. Pra mim, a bandeira nossa, dos progressistas, deveria ser: a escola brasileira será tão boa quanto a melhor do mundo e o filho do trabalhador mais pobre estudará numa escola tão boa quanto o filho do capitalista mais rico.

Vamos falar do momento político atual. Se a fase 1992-2018 foi a República dos Sonhos, como o senhor chamaria o governo Bolsonaro? 

A República do Desastre. Mas com um detalhe: eleita por causa dos nossos erros.

O senhor votou em quem?

No primeiro turno, Marina. No segundo, Haddad. Manifestei publicamente e ele me ligou agradecendo. Não tenho a menor dúvida que Haddad seria um presidente muito melhor do que Bolsonaro.

No livro, ao falar sobre a prisão de Lula, o senhor escreve: ”muitos de nós continuamos a achar sua condenação injusta e por um julgamento parcial e sem provas suficientes”. O senhor se inclui nessa primeira pessoa do plural?

Em certo sentido, sim. Não totalmente porque eu evito de manifestar que a justiça está errada, porque na hora em que começamos a achar isso, que a justiça tá errada, a democracia está em perigo. Mas eu não estou convencido de que tenha essas provas todas contra o Lula pessoalmente. Eu acho que o Lula é responsável pelo que aconteceu na Petrobrás. Como o Fernando Henrique é responsável pela compra de voto para a reeleição, que todo mundo diz que houve. Alguns vão mais longe e dizem que houve corrupção no processo de privatização. Então, sobre o Lula: eu não gosto de apontar o dedo para a justiça, porque isso é apontar o dedo para a democracia, mas eu não estou convencido. Eu aceito. Tem que aceitar a justiça. Mas para a política brasileira, não foi bom o Lula ser preso.

No caso específico da prisão pelo tríplex, o senhor acha que houve injustiça?

Se eu dissesse que foi houve injustiça eu estaria desconhecendo a democracia brasileira. Está dentro das regras, mas eu não sou uma pessoa convencida de que havia tantas provas, de que foi correto. Foram muitas instâncias de julgamento. É difícil imaginar uma conspiração passando por tantas instâncias. Então, eu aceito, eu me submeto, mas não me convenço.

O senhor tem alguma mágoa do ex-presidente Lula?

Não. A gente só tem mágoa nas relações pessoais de amizade, de amor. Eu não vejo como ter mágoa na política. Até porque, se eu fosse comparar a mágoa pela demissão [do Ministério da Educação, após um ano à frente da pasta] com a gratidão por ter sido ministro, pra mim pesa mais ter sido ministro. Mas tenho frustração. Eu queria entrar para a história o ministro que erradicou o analfabetismo de adultos. E a gente ia conseguir isso em 4 anos, não precisava nem dos 8. 

Para fechar o capítulo PT: na repercussão do livro, o jornalista Luís Nassif afirmou que o senhor negociou voto no processo de impeachment com a ex-presidenta Dilma. Estariam em jogo um cargo de embaixador na Unesco e escrita de um livro sobre o impeachment. Essa história é verdadeira?

Não. Nada disso aconteceu. Se eu tivesse negociado, como votei pelo impeachment, eu deveria ter recebido do governo Temer. O que eu pedi ao Temer? Nada. Aliás, se ele tivesse oferecido, eu era obrigado a recusar, porque as pessoas iam dizer que eu tinha votado em função disso. Era bem possível que se eu quisesse um cargo, eu teria, mas não quis. [nota da reportagem: a assessoria da ex-presidenta Dilma Rousseff foi contactada e disse que não comentaria o assunto].

Delfim Neto escreveu que há um setor esclarecido do governo Bolsonaro que tenta recuperar o caminho virtuoso. O senhor concorda?

Primeiro, esclarecido não é sinônimo de progressista. Eu conheço muita gente esclarecida e conservadora, com argumentos muito fortes. É possível que tenha gente esclarecida, mas eu não vejo. No começo, havia um certo núcleo de militares que pareciam esclarecidos, mas, hoje, eles se entregaram. Eu acho que é um governo muito homogêneo pela direta, pelo conservadorismo e por muitos preconceitos. Mas vamos dar uma colher de chá, vai que a Regina Duarte seja esse núcleo esclarecido.

Acho que o Delfim faz referência sobretudo ao ministro Paulo Guedes e sua equipe. Ele considera que os rumos da economia estão corretos.

Aí o ponto não é ser esclarecido, é ser competente ou não. Cada vez mais me convenço de que a economia é uma questão técnica. A revolução, a transformação é como a gente usa o dinheiro que uma economia eficiente faz. Nesse sentido, se estivesse no Congresso, eu teria votado na reforma da Previdência que o Guedes apresentou. Mas não vejo muita coisa, eu não vejo novidade [na gestão econômica]. E de vez em quando eu vejo barbaridades do ponto de vista de inteligência, como o Guedes dizer que quem danifica o meio ambiente são os pobres. Isso é de uma estupidez total. Quem está sacrificando o meio ambiente é a voracidade de consumo e a ânsia de lucro dos empresários. É esse casamento. 

Mas “despolitizar a economia”, que é um termo que o senhor usa no livro, não é um convite à desregulamentação? Uma visão ultraliberal que, no fim das contas, tem ampliado a desigualdade?

Não. A desigualdade não vem disso. A desigualdade vem de não distribuir igualmente o conhecimento por meio da educação. Na hora que o filho do pobre estudar na mesma escola que o filho do rico, a desigualdade cai, desde que a economia seja eficiente para gerar riqueza para todos. A parcela pobre e educada vai se apropriar corretamente. Todos os países que fizeram uma revolução, que deram igualdade na educação, são países que conseguiram caminhar para derrubar a desigualdade social. A desigualdade não é um produto da regulamentação. Até porque a regulamentação não tem esse papel. A regulamentação, quando necessária, é para a economia funcionar melhor. A distribuição não vem da regulamentação. 

Se for distribuir melhor sacrificando a essência econômica, a gente tropeça. Quer exemplos? A Argentina, a Venezuela. Aí você diz: ”e o Chile?”. O Chile, em dois, três anos, vai estar melhor do que todos esses, porque tem duas coisas: uma educação razoável e políticos que se entendem. Então, eles vão mudar aquilo rapidamente.

O senhor dedica o livro às novas lideranças democráticas e progressistas que estão surgindo. Quem são essas pessoas?

A Tabata [Amaral, deputada federal pelo PDT-SP], o Pedro Cunha Lima [deputado federal pelo PSB-PB, filho do ex-senador e ex-governador Cássio Cunha Lima e neto do ex-governador e ex-deputado federal Ronaldo Cunha Lima], [Felipe] Rigoni [deputado federal pelo PSB-ES], o Túlio [Gadêlha, deputado federal pelo PDT-PE].

Uma das críticas à Tabata e ao Rigoni é a proximidade com o que se chama de “bancada Lemann”. Ambos receberam formação em programas ligados ao empresário Jorge Paulo Lemann. 

Em que essa ligação é ruim? Eles vendem o voto para beneficiar o Lemann? Não. Aliás, nas minhas conversas com a Tabata, eu nunca ouvi ela falar do Lemann. O Lemann é um cara que aproveita a fortuna dele para investir em educação. Educação política, inclusive. O Lemann aparece por fracasso nosso. Se os partidos políticos fossem escola, não precisava o Lemann estar botando dinheiro para formar jovens políticos. No meu tempo de jovem, a gente aprendia no partido.

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Enem: após erro, especialistas recomendam auditoria e interrupção do Sisu http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br/2020/01/21/enem-apos-erro-especialistas-recomendam-auditoria-e-interrupcao-do-sisu/ http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br/2020/01/21/enem-apos-erro-especialistas-recomendam-auditoria-e-interrupcao-do-sisu/#respond Tue, 21 Jan 2020 21:04:25 +0000 http://rodrigoratier.blogosfera.uol.com.br/?p=112

O presidente do Inep, Alexandre Lopes. (Crédito: Fabio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil)

A notícia da divulgação de erros em notas de pelo menos 5.974 pessoas abalou a credibilidade do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). O prazo de análise dos equívocos foi insuficiente e as explicações do ministro da Educação, Abraham Weintraub, e do presidente do Inep, Alexandre Lopes, deixaram dúvidas no ar. Diante desse cenário, a melhor opção para preservar a credibilidade do exame seria uma auditoria no resultado. Até lá, a recomendação é interromper o Sisu, o Sistema de Seleção Unificada que dá acesso às universidades federais.

Essa é a opinião dos três especialistas em avaliação educacional ouvidos pelo blog: Ocimar Alavarse, da Faculdade de Educação da USP, Nelson Gimenes, do grupo de pesquisa em Avaliação Educacional da Fundação Carlos Chagas, e Wolney Melo, da consultoria Atitude Educacional, autor de tese de doutorado sobre avaliação em larga escala. Os três defendem maior transparência sobre o processo de correção das inconsistências — e varreduras mais amplas, com informações detalhadas sobre os 3,9 milhões de exames.

De acordo com o presidente do Inep, uma força-tarefa de “300 pessoas” (segundo o Portal da Transparência, a autarquia toda conta com 478 servidores ativos) identificou e corrigiu os problemas entre a noite da 6a (17) e a manhã de 2a (20). A origem dos equívocos seria uma associação incorreta entre a cor do caderno de questões e do gabarito dos candidatos. Alguém que fez a prova azul, por exemplo, teria sido prejudicado ao ter seu desempenho corrigido pelo gabarito da prova amarela (as questões mudam de posição em provas de diferentes cores). Ainda segundo o Inep, a responsabilidade seria da gráfica Valid, contratada para a impressão do exame. De acordo com Lopes, os equipamentos teriam “engasgado”, gerando erro de associação entre o caderno de respostas e os gabaritos.

Os especialistas concordam que, em 72 horas, é possível testar o conjunto de 3,9 milhões de provas para os diferentes gabaritos do exame, como diz ter feito o MEC. “Mas isso pode não ser suficiente”, opina Melo. “Para afastar qualquer dúvida, seria necessário cruzar os cadernos de questões com os cartões de resposta e as informações de mapa de sala [utilizado nas aplicações da prova e que deve conter informações sobre os estudantes, o lugar em que cada um senta e o tipo de prova que faz]. Só assim seria possível ter certeza da associação correta entre prova, resposta e correção”, afirma. Segundo o especialista, uma avaliação desse tipo dificilmente poderia ser feita num fim de semana.

“A equipe de técnicos do Inep é de alto padrão, mas uma auditoria seria uma resposta à altura para conferir transparência ao exame”, afirma Gimenes. “Um dos motivos de o Enem ter se tornado um exame amplamente utilizado foi a alegação de que o acesso à educação superior se daria de forma mais transparente. E foi pela sua legitimidade que as instituições de referência aderiram ao exame. É isso que está em jogo”, completa. Para Alavarse, o Enem não pode se dar ao luxo de errar “nem uma prova”, pois lida com o esforço de cada aluno para conseguir vaga numa faculdade pública. “A auditoria seria o ideal. Essa foi uma solução já adotada quando houve discrepância nos resultados da Prova São Paulo [avaliação da rede municipal paulista]”, exemplifica.

Alavarse e Gimenes sugerem a formação de uma comissão de especialistas para um pente fino nos resultados. Para Melo, haveria transtornos, com atrasos em outros vestibulares, no Prouni e, talvez, no início das aulas. “Mas, ainda assim, é necessário. A credibilidade do exame está em questão. Vejo sério risco de judicialização”, afirma.

Questões sem resposta

Além dos três especialistas, a reportagem ouviu fontes de entidades envolvidas no exame, que pediram anonimato por medo de represálias. Houve consenso de que as declarações de Weintraub e a entrevista coletiva de Alexandre Lopes não esclareceram questões importantes. Servidor público da carreira de analista de comércio exterior, o presidente do Inep não conseguiu detalhar aspectos técnicos sobre o trabalho de revisão da correção. A reportagem agrupou as principais dúvidas levantadas pelos dos entrevistados:

A falsa “regionalização” O Inep afirma que 95% dos casos de erros na nota ocorreram em quatro cidades – três delas em Minas Gerais e uma na Bahia. Levantou-se a hipótese de um único pacote de provas com falhas nas máquinas de impressão, mas apenas Ituiutaba e Iturama são relativamente próximas (158 km de distância). Apesar de estar no mesmo estado, Viçosa fica a 892 km de Ituiutaba e a 957 km de Iturama. Alagoinhas, a 1715 km e 1826 km, respectivamente. Ganha força a hipótese de que houve, pelo menos, quatro falhas mais graves.

Casos isolados O Inep encontrou 116 notas erradas fora das quatro cidades mais afetadas. São municípios de 24 estados (Roraima e Amapá ficam de fora) e o Distrito Federal. Por que esses equívocos foram numericamente inferiores aos das quatro cidades que concentram as ocorrências? Foram reparados mais rapidamente — por quem e de forma? A reportagem pediu ao Inep a lista das cidades com casos de inconsistências, mas não obteve resposta até a publicação do texto.

A gráfica sabia? “Quando ocorre um erro de impressão ou de leitura, mesmo os sistemas mais simples, caseiros, indicam o mau funcionamento”, compara Alavarse. “Por analogia, as gráficas possuem sinalização semelhante, possibilitando ver o equívoco já na hora da impressão.” A gráfica teria percebido as falhas? Se sim, por que deixou passar? Avisou o Inep? Se sim, deixou registro? Quais providências foram tomadas? “Se ‘a máquina engasgou’, como diz o presidente do Inep, é preciso parar o processo”, completa Alavarse.

O tamanho do problema  O Inep fala em menos de 6 mil provas (0,15% do total) com problemas. Mas o e-mail criado para receber pedidos de reavaliação recebeu, segundo dados da própria autarquia, 172 mil mensagens. “É uma diferença muito grande de números. E isso num intervalo exíguo, de 6a até 10h da manhã de 2a, o que pode ter excluído quem tem acesso precário à internet”, afirma Melo. Se o órgão reconheceu a necessidade de rever as notas de todos os 3,9 milhões de exames, por que, então, criou o e-mail? Como tratou as reclamações e que tipo de resposta forneceu?  

O trabalho da força-tarefa Que tipo de varredura foi efetivamente feita no fim de semana? E quem participou da força-tarefa que, segundo o Inep, trabalhou 24 horas por dia e envolveu 300 pessoas, equivalente a dois terços dos servidores de todos os setores da autarquia? A participação de profissionais do consórcio aplicador e da gráfica pode ser questionada, uma vez que cabe ao Inep a função de fiscalizar a atuação das contratadas.

Falta transparência

Procurada pela reportagem, a gráfica Valid, responsável pela impressão do exame, disse que não vai se manifestar. A Fundação Cesgranrio, líder do consórcio aplicador Cesgranrio-FGV, pediu que as dúvidas fossem remetidas ao Inep. A autarquia, por sua vez, indicou um e-mail para as questões da reportagem, que não foram respondidas até a publicação do texto.

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