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Rodrigo Ratier

Para especialista, política de alfabetização do MEC é “retrocesso"

ECOA

14/10/2019 09h01

Desde que foi anunciado, em agosto deste ano, o caderno do Ministério da Educação que detalha a nova política de alfabetização tem sido objeto de críticas. O documento faz a defesa de um método específico – o fônico, que se foca na relação entre letras e sons. Segundo o MEC, esse seria a única metodologia respaldada por "evidências científicas".

Giovana Cristina Zen, educadora professora do Programa de Pós-Graduação em Educação e do Mestrado Profissional em Educação na Universidade Federal da Bahia (UFBA), discorda. "A nova política é um retrocesso sem precedentes na história da educação do nosso país", afirma. Atualmente investigando os processos de aquisição da escrita na Língua Portuguesa, Giovana faz um pós-doutorado sob orientação de Emilia Ferreiro, uma das maiores referências mundiais em alfabetização.

Segundo a especialista, a defesa do método fônico é "alarmante", pois há uma lista de aspectos preocupantes: o único pedagogo da equipe de elaboradores defende o homeschooling (educação domiciliar); as soluções apresentadas são ultrapassadas e importadas sem diálogo com a realidade brasileira; há casos de sucesso no Brasil ignorados; o documento é distante da escola e parece feito para atender a interesses de um grupo específico de atores da educação; a concepção de alfabetização do MEC transforma crianças, jovens e adultos em "máquinas de sonorização" e não em sujeitos capazes de pensar e aprender. "A escrita é uma forma de ser e estar nesse mundo, de imaginar e sonhar. O que o atual governo está propondo pode ter consequências irreparáveis." A seguir, a entrevista que Giovana concedeu ao blog:

Como você avalia o recém-lançado caderno de orientações da política nacional de alfabetização?

GIOVANA ZEN É um retrocesso sem precedentes na história da educação do nosso país, sob vários aspectos. Sem dúvida, a defesa pelo método fônico é a mais alarmante, mas há outros aspectos que também precisam ser considerados.

Na primeira página do documento, a nota do Ministro da Educação, Abraham Weintraub, diz que "A educação é uma preocupação central das nações do século XXI. Não se pode conceber um futuro próspero para o país que descuida das suas políticas educacionais, uma vez que o progresso científico, econômico e social de um povo está intimamente relacionado com a qualidade da sua educação". Este parece ser um consenso entre políticos, educadores e comunidade em geral. Um discurso fácil, repetido à exaustão, mas muito difícil de ser consolidado. Há, sem dúvida questões de orçamento, mas o problema transcende, e muito, a dimensão econômica. A questão é emergencial e demanda políticas públicas realistas com relação à diversidade de situações existentes no país, além de princípios claros e coerentes de ação.

O Secretário de Alfabetização do MEC, Carlos Nadalim, que "o lançamento da Conabe, a Conferência Nacional de Alfabetização Baseada em Evidências, tem como objetivo alinhar a estratégia do Ministério da Educação do Brasil àquelas de autoridades educacionais de países como o Reino Unido, com a Estratégia Nacional de Leitura, de 1998; os EUA, com o Painel Nacional da Leitura, de 2000; a França, com o Observatório Nacional da Leitura, de 1998″.

Ou seja, o Ministério da Educação está se baseando em experiências internacionais do século XX para resolver os desafios do século XXI?! É isso mesmo? Nós vamos importar novamente uma proposta pedagógica que não dialoga com a nossa cultura? Vamos ignorar todas as experiências recentes de educadores brasileiros que conseguiram alfabetizar seus alunos, como o que vem acontecendo com as redes municipais da Chapada Diamantina, na Bahia, por exemplo?

O MEC afirma que o documento foi construído por especialistas no assunto.

O grupo de autores inclui vários psicólogos, professor de música, de Educação Física, psicomotricista e médico. O único pedagogo da equipe faz apologias contra a escola e defende homeschooling. O que podemos pensar sobre essa composição? A alfabetização deixou de ser um problema pedagógico na atual gestão do Ministério da Educação. Ela se transformou em uma patologia que precisa ser combatida. Todo o debate científico do campo educacional, realizado por pesquisadores da América Latina nos últimos 20 anos, está sendo completamente ignorado. A proposta atende a um grupo específico de pessoas, que parece estar mais interessado em fazer valer as próprias elucubrações conceituais, do que dialogar com a escola e tratar os professores como sujeitos que possuem uma trajetória profissional que precisa ser respeitada e valorizada.

Para alfabetizar, as professoras e professores costumeiramente recorrem a uma mescla de atividades e procedimentos, aparentemente sem preocupação com metodologias ou concepções de ensino. É preciso caminhar na busca de coerência metodológica?

Sim. A busca por coerência metodológica é uma condição para assegurar aos professores o direito de saber ensinar. Alfabetizar é uma tarefa para profissionais. Para realizar uma boa intervenção o professor precisa orquestrar as características do conteúdo em questão, as conceitualizações dos alunos e os problemas que eles precisam enfrentar para ressignificar o que sabem.

No Brasil não faltam programas de formação de professores alfabetizadores. O problema é que cada um apresenta uma perspectiva teórica diferente sobre como se aprende a ler e a escrever, o que também determina modos diferentes de ensinar. Os professores passam então a incorporar em suas práticas pedagógicas uma série de atividades e procedimentos sem a devida reflexão sobre os fundamentos epistemológicos que ancoram cada uma das propostas. Há o predomínio de um ecletismo teórico metodológico que, como mostram os dados, têm gerado resultados insatisfatórios.

Uma crítica comum é: "o método usado nos últimos anos não está funcionando porque as crianças chegam aos 8 anos sem saber ler e escrever". O que se pode dizer sobre esse raciocínio?

Há diversos equívocos nessa fala. O analfabetismo no Brasil é uma questão extremamente complexa e reduzi-la ao método significa desconsiderar todas as questões socioeconômicas que interferem nesse fenômeno. No nosso país, analfabetismo tem raça, tem classe social e tem endereço. Os maiores índices estão concentrados no Norte e no Nordeste. O número de pessoas negras analfabetas corresponde ao dobro de pessoas brancas na mesma condição. Precisamos nos perguntar as razões pelas quais isso ocorre. Certamente a discussão sobre "o" método não é suficiente para compreender essa perversidade social que ocorre no nosso país.

Outra falácia é afirmar que o construtivismo é o único "método" sendo utilizado pelos professores brasileiros, de norte a sul do país. Primeiro porque o construtivismo não é um método, é uma concepção de educação. Quem afirma isso nem sabe o que está dizendo. Segundo porque, apesar de todos os esforços empreendidos até o momento, muitos professores seguem alfabetizando os seus alunos com o método fônico que o MEC agora anuncia como aquele que possui "evidências científicas". Infelizmente, práticas alfabetizadoras concebidas como transcrição fonética, na qual as crianças são submetidas a treinos sistemáticos de codificação e decodificação, ainda são muito comuns.

Ao dizer que o método fônico é o único baseado em evidências científicas, o MEC mente?

Essa fala é um recurso discursivo que se destina aos leigos procurando ofertar confiabilidade à proposição do método fônico. Deve-se compreender que dentro, de cada área de conhecimento, há um intenso debate sobre os procedimentos de produção e sustentação dos enunciados científicos, das teorias. A alfabetização, como outros temas ligados à educação, pode ter significados muito distintos, todos eles logicamente sustentados, mas com contornos bastante distintos. Isso é válido também, por exemplo, na medicina, em que a compreensão dos médicos alopatas e homeopatas sobre uma manifestação qualquer pode variar, ainda que ambos apresentem evidências e pensamento lógico em suas sustentações.

Se há evidências para vários métodos, é preciso então questionar o que o MEC entende por alfabetização?

Sim. Deve-se considerar a concepção que orienta as proposições apresentadas. Na página 18 do Caderno de Orientações do PNA, a alfabetização é definida como o ensino das habilidades de leitura e de escrita em um sistema alfabético. Na página seguinte, explicita-se que "ler e escrever com autonomia é conhecer o código alfabético e as correspondências grafofonêmicas". Mais adiante, há uma afirmação de que "a compreensão de textos, por sua vez, consiste num ato diverso do da leitura. É o objetivo final, que depende primeiro da aprendizagem da decodificação e, posteriormente, da identificação automática de palavras e da fluência em leitura oral".

A proposta privilegia as propriedades fonológicas, em detrimento dos aspectos morfológicos, semânticos e culturais da língua escrita. Isso reduz a alfabetização à capacidade de identificar a estrutura sonora das palavras através da codificação e da decodificação. Qual a concepção de crianças, jovens e adultos que orienta essa proposta? O sujeito deixa de ser considerado um cidadão da cultura escrita e passa a ser uma espécie de máquina de sonorização.

O que o MEC quer dizer quando afirma que a compreensão de textos é um ato diverso da leitura?

Significa que as crianças serão submetidas a treinos fonológicos para decodificar palavras e que os sentidos e significados do texto escrito são irrelevantes. Não é à toa que o documento não apresenta a importância da literatura infantil para a formação de futuros leitores. Em verdade, o que se propõe não é formação de leitores, mas de decodificadores privados do entendimento acerca dos comportamentos específicos das diversas práticas sociais de leitura e escrita.

Essa espécie de contra-ataque do método fônico começou agora com o governo Bolsonaro?

Não. Nos últimos anos, em função da corrida por bons resultados nas avaliações externas, como o IDEB, assistimos uma forte avalanche de programas de alfabetização que prometem alfabetizar todas as crianças em um tempo relativamente curto. As experiências internacionais de pautar políticas públicas por avaliações externas têm gerado desvios de procedimentos e vêm sendo abandonadas em diversos países. Alguns programas incluem em sua bibliografia pesquisadores como Emilia Ferreiro, mas propõem as mesmas atividades das velhas cartilhas. Muitas redes municipais de ensino aderiram a esses programas e conseguiram inclusive bons resultados no IDEB. Algumas possuem reconhecimento nacional por este feito. A questão é que precisamos nos perguntar que tipo de cidadão é este que esses programas pretendem formar, ao ridicularizar a linguagem escrita com frases como "Ivo viu a uva" ou "O bebê baba".

Emilia Ferreiro nos lembra que a escrita não é um produto escolar, mas sim um objeto cultural, resultado do esforço coletivo da humanidade. Um objeto com propriedades específicas que dá suporte para variadas ações e intercâmbios sociais. A escrita não se reduz a mera transcrição fonética, ela não é um sistema abstrato de formas linguísticas, mas uma forma de ser e estar nesse mundo. São marcas linguísticas de alto valor agregado com as quais se estabelece diversos usos sociais, diversas relações de poder, de imaginar e sonhar. A escrita concebida com um código retira das crianças, jovens e adultos brasileiros o direito de se apropriar das culturas do escrito, compreendida como produção de linguagem pelos sujeitos.

Então, que tipo de concepção a alfabetização deve perseguir?

Há várias concepções de alfabetização. Afirmar que há uma única concepção que esteja "correta" significa fazer a mesma coisa que a atual gestão do governo federal está fazendo, negando qualquer possibilidade de diálogo com as diversas perspectivas existentes.

Há na América Latina um grupo de educadores e pesquisadores, e eu me incluo nesse grupo, que defende que a alfabetização deve ser compreendida como o ingresso nas culturas do escrito, ou seja, em um conjunto de práticas sociais de leitura e de escrita definidas historicamente. Aprender a ler e a escrever significa relacionar-se com o conhecimento como um objeto socialmente construído a partir do que já se conhece, confrontando hipóteses e problematizando suas próprias conceitualizações. Este não é apenas um modo de aprender a ler e a escrever, mas também um modo de estar no mundo.

Alfabetizar as crianças, os jovens e os adultos considerando o que já sabem não é tarefa fácil, mas necessária quando se pensa em uma formação de sujeitos intelectualmente ativos e produtores de cultura. A escrita não é apenas um objeto rudimentar, separado da vida dos sujeitos. Apropriar-se desse bem comum significa apropriar-se de parte importante da cultura, significa pertencer a uma comunidade. Como diz Emilia Ferreiro: "Aprendi que os pensamentos das crianças incomodam porque é difícil levá-los em conta e fazer algo com eles. Mas as crianças vão continuar pensando, felizmente. Claro que se pode ensinar que é melhor não pensar e que a tarefa delas é apenas repetir. Mas isso é fazer um pecado intelectual para toda a vida".

Numa conversa anterior, você afirmou que "o fonema não preexiste à tomada de consciência". O que isso quer dizer?

Isso significa dizer que sua aprendizagem é produto das relações entre o que é dito e o que é escrito. A relação entre a oralidade e a escrita é dialética e não linear. Ou seja, a consciência fonológica [o conhecimento das relações entre sons e letras] não é considerada pré-requisito para compreender o princípio alfabético da escrita nem tampouco é sua consequência. Para Emilia Ferreiro, o fonema como unidade em si não preexiste à escrita. O processo de tomada de consciência fonológica ocorre durante a escrita, com a finalidade de resolver problemas inerentes ao ato de escrever.

A consciência fonológica só entra em jogo quando o estudante está diante do desafio de ler e escrever. E, claro, quanto mais a criança compreende as relações fonológicas entre o oral e o escrito, mais ela avança em suas conceitualizações. Por esse motivo, é fundamental considerar a existência de um processo dialético na relação entre a oralidade e a escrita.

A concepção de alfabetização que você defende tem resultados positivos concretos?A trajetória do Instituto Chapada de Educação e Pesquisa, na Chapada Diamantina, na Bahia, revelou que bons resultados podem ser alcançados em tempos relativamente curtos quando se tem uma ação articulada. Uma política pública centrada nas aprendizagens das crianças e não em avaliações externas, ainda que elas sejam consideradas, coloca os educadores diante de um compromisso público de educar as novas gerações. O Instituto Chapada assume há mais de 20 anos uma concepção de alfabetização que reconhece que as crianças são capazes de pensar e de aprender. Todas as crianças. Todas têm o direito de ser cidadãs da cultura escrita, apesar das adversidades socioeconômicas do interior da Bahia. Essa concepção de alfabetização faz diferença, sim!

Você vê o governo federal trabalhando nesse sentido num futuro próximo?

Não. Para assegurar o direito de participar das diversas práticas sociais de leitura e escrita, é preciso assumir uma concepção de alfabetização que entenda isso como centralidade. Não tem nada a ver com o que a Base Nacional Comum Curricular e a Política Nacional de Alfabetização propõem. O que o atual governo está propondo pode ter consequências irreparáveis para a nação brasileira.

Sobre o Autor

Jornalista e professor universitário na Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo. É também autor do blog Em Desconstrução (emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br), de Universa, coordenador do blog coletivo Entendendo Bolsonaro (entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br), e fundador e gestor do curso online contra fake news Vaza, Falsiane (www.vazafalsiane.com)

Sobre o Blog

Um espaço com visões, provocações e esperanças sobre a mais nobre das atividades humanas: educar.