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Rodrigo Ratier

“A esquerda, hoje, não tem bandeira”, diz Cristovam Buarque

ECOA

28/01/2020 04h00

Cristovam Buarque acha que a esquerda levou a direita ao poder. Esse é o título em inglês do livro Por que Falhamos – o Brasil de 1992 a 2018, um arrazoado de 24 equívocos dos setores que ele classifica como "democrático-progressistas". A denominação é polêmica. Abrange cinco presidentes anteriores a Bolsonaro, de Itamar a Temer – e inclui políticos como Cristovam. Mesmo votando a favor do impeachment, da PEC do Teto e da reforma trabalhista, o ex-senador, ex-ministro da Educação e candidato derrotado a presidente se considera uma pessoa de esquerda.

"Defendo que o filho do pobre e o filho do rico estude na mesma escola. Pra mim, isso é ser de esquerda: defender a igualdade e o direito de cada um desenvolver o seu intelecto, que é o capital do futuro". Também a primeira pessoa do plural no título é confusão garantida. "Ninguém aceita o 'nós'. O PT diz que o culpado foram os golpistas. O PSDB diz que o culpado foi o PT".

Aos 76 anos, convidado pela Unesco para compor um grupo sobre o futuro da educação, Cristovam não pensa em disputar novas eleições. "A gente nunca pode dizer que é impossível, mas eu não vejo como eu terei motivação pra isso". Na entrevista concedida por telefone ao blog, os assuntos vão de Lula à economia como área técnica, passando por Tabata Amaral e a necessidade de uma nova utopia. Confira os principais trechos:

Seu livro recém-lançado aponta os erros dos progressistas que não apresentaram alternativa a Bolsonaro. O senhor tentou a reeleição ao senado em 2018 e não conseguiu. Onde o senhor errou?

Cristovam Buarque As pessoas queriam mudar. Num corpo a corpo na cidade de Taguatinga, aqui no DF, um homem se aproximou e disse que eu era o melhorzinho dos candidatos. Fiquei muito orgulhoso. E aí falou: "Mas eu não vou votar em você, não". Ele disse que queria outro e que eu já estava há muito tempo ali. A minha derrota foi um pouco a prova da rejeição a esse bloco [progressista].

O senhor chama a fase da República que vai de 1992 a 2018 de democrático-progressista ou "República dos Sonhos". O que houve de democrático, progressista ou sonho no governo Temer?

O que caracteriza os cinco presidentes do período [Itamar, FHC, Lula, Dilma e Temer] é que todos eles lutaram contra a ditadura. Eles têm idéias progressistas em relação aos costumes e defendem um certo nível de atendimento social. O Temer continuou todos os projetos sociais. Você pode dizer que, do ponto de vista econômico, ele era neoliberal. Mas o [Henrique] Meirelles foi ministro da economia com o Temer e presidente do Banco Central com o Lula. A política econômica foi a mesma, salvo durante alguns anos da Dilma em que houve um relaxamento do equilíbrio fiscal. Temer era vice da Dilma. Fazia parte desse bloco. Duas vezes foram pedir voto dizendo que ele era um homem preparadíssimo para assumir a Presidência da República. 

Mas o senhor não considera que houve uma inflexão do governo Dilma para o governo Temer? A reforma trabalhista, por exemplo. Os críticos vão dizer que retirou direitos dos trabalhadores.

Descrevo no livro um erro que chamo de "horror às reformas". A realidade as exige. O mundo mudou. Com a globalização, nenhum país hoje tem o poder de mexer na economia como quiser. Nenhum. Nem salário, nem taxa de juros, nós estamos todos ligados internacionalmente. Não se pode ficar com uma lei trabalhista de 1942. Não se pode ignorar a automação, a robótica, a inteligência artificial. E tem de ter reformas. Não fizemos antes [a reforma trabalhista] por causa de outro erro: ficamos prisioneiros das corporações. Em vez de fazer o que o povo precisava para o futuro, fizemos o que os sindicatos queriam. Só que sindicato não defende o povo, defende trabalhador associado. Quem defende o povo são os partidos, não os sindicatos. 

Pensando no conjunto das reformas Previdenciária e Trabalhista, a conta foi dividida de forma justa? Houve combate a privilégios?

Nós não tocamos em privilégios nem em mordomias. Mas deixar como estava seria pior. Por exemplo: o trabalho intermitente. Não é uma coisa que a gente queira, mas não trazer essa possibilidade no mundo de hoje não é viável. Não somos a Coreia do Norte. Lá, eles fazem a política trabalhista que quiserem. Nós não podemos, porque aqui, se a gente começar a ter mecanismos que fazem o trabalho muito caro numa empresa, ela vai para o Paraguai ou até para a China. E nós não temos como impedir.

Sua fala e alguns trechos do livro soam bastante fatalistas.

O que você chama de fatalismo – que não é uma palavra ruim, mas eu não uso – eu chamo de realidade histórica. No mundo atual, há uma falta de independência, ou uma interdependência. Até uma coisa simples como esta nossa conversa telefônica pode desaparecer se decidirmos ser totalmente independentes. Não só porque o aparelho que a gente está usando é importado, como porque a gente não controla os satélites lá de fora. As esquerdas tem que entender essa interdependência e as limitações que ela impõe ao poder político.

O senhor votou a favor do teto de gastos defendendo que ele não travaria os recursos da educação, apenas o orçamento geral. Na prática, a educação não recebeu mais dinheiro. O teto de gastos aumentou a desigualdade? 

O teto é uma regra da aritmética. É possível gastar mais do que se arrecada? Não. Acho que nós de esquerda, sobretudo os sindicatos, não queremos brigar para tirar dinheiro de nenhum outro setor. Aí, nós reivindicamos, não lutamos. A esquerda brasileira não luta, ela reivindica. Ela quer gastar a mais na educação sem tirar de lugar nenhum.

Mas tirar de onde se os principais gastos do governo são saúde, educação e Previdência? 

Nós aqui perdemos dinheiro com corrupção, com obras desnecessárias. O Brasil quer fazer Copa, Olimpíadas e escola. Não dá. Tem que escolher, ou estádio ou escola. Ou os juízes, os deputados e senadores com essas mordomias todas, ou o professor ganhando mais. 

A crítica ao discurso anticorrupção é que, mesmo cortando todos os desvios e privilégios, a conta não fecha para conseguir educação de qualidade.

Só corrupção do comportamento, do roubo, não mesmo. Mas combatendo a corrupção das prioridades, a conta fecha. O Brasil é um país que tem um PIB de mais de 6 trilhões de reais. Não é para já, mas dá para chegar à escola ideal em 30 anos. O Brasil precisa gastar 15 mil reais por aluno [nota da reportagem: em 2018, gastou 3,3 mil reais em média, considerando as séries iniciais nas zonas urbanas]. Isso permitiria pagar 15 mil reais por mês ao professor [nota: o piso do magistério em 2020 será de 2.557,74 reais]. Se o PIB do Brasil crescer 2% ao ano, vamos precisar de uma fatia de 6,5% do PIB para a educação. Hoje, já investimos 5%. 1,5% tem de onde tirar.

Qual o maior erro do grupo que o senhor chama de democrático-progressista?

O maior erro nosso foi não ter uma utopia, não ter uma proposta de longo prazo. Nós perdemos a eleição e não deixamos uma bandeira. Além de tirar o Bolsonaro, qual é a nossa bandeira? Voltar à Previdência de antes? Voltar às leis trabalhistas de antes? Antigamente, era estatizar a economia. Não é mais. Era igualdade plena. Não é mais. Pra mim, a bandeira nossa, dos progressistas, deveria ser: a escola brasileira será tão boa quanto a melhor do mundo e o filho do trabalhador mais pobre estudará numa escola tão boa quanto o filho do capitalista mais rico.

Vamos falar do momento político atual. Se a fase 1992-2018 foi a República dos Sonhos, como o senhor chamaria o governo Bolsonaro? 

A República do Desastre. Mas com um detalhe: eleita por causa dos nossos erros.

O senhor votou em quem?

No primeiro turno, Marina. No segundo, Haddad. Manifestei publicamente e ele me ligou agradecendo. Não tenho a menor dúvida que Haddad seria um presidente muito melhor do que Bolsonaro.

No livro, ao falar sobre a prisão de Lula, o senhor escreve: "muitos de nós continuamos a achar sua condenação injusta e por um julgamento parcial e sem provas suficientes". O senhor se inclui nessa primeira pessoa do plural?

Em certo sentido, sim. Não totalmente porque eu evito de manifestar que a justiça está errada, porque na hora em que começamos a achar isso, que a justiça tá errada, a democracia está em perigo. Mas eu não estou convencido de que tenha essas provas todas contra o Lula pessoalmente. Eu acho que o Lula é responsável pelo que aconteceu na Petrobrás. Como o Fernando Henrique é responsável pela compra de voto para a reeleição, que todo mundo diz que houve. Alguns vão mais longe e dizem que houve corrupção no processo de privatização. Então, sobre o Lula: eu não gosto de apontar o dedo para a justiça, porque isso é apontar o dedo para a democracia, mas eu não estou convencido. Eu aceito. Tem que aceitar a justiça. Mas para a política brasileira, não foi bom o Lula ser preso.

No caso específico da prisão pelo tríplex, o senhor acha que houve injustiça?

Se eu dissesse que foi houve injustiça eu estaria desconhecendo a democracia brasileira. Está dentro das regras, mas eu não sou uma pessoa convencida de que havia tantas provas, de que foi correto. Foram muitas instâncias de julgamento. É difícil imaginar uma conspiração passando por tantas instâncias. Então, eu aceito, eu me submeto, mas não me convenço.

O senhor tem alguma mágoa do ex-presidente Lula?

Não. A gente só tem mágoa nas relações pessoais de amizade, de amor. Eu não vejo como ter mágoa na política. Até porque, se eu fosse comparar a mágoa pela demissão [do Ministério da Educação, após um ano à frente da pasta] com a gratidão por ter sido ministro, pra mim pesa mais ter sido ministro. Mas tenho frustração. Eu queria entrar para a história o ministro que erradicou o analfabetismo de adultos. E a gente ia conseguir isso em 4 anos, não precisava nem dos 8. 

Para fechar o capítulo PT: na repercussão do livro, o jornalista Luís Nassif afirmou que o senhor negociou voto no processo de impeachment com a ex-presidenta Dilma. Estariam em jogo um cargo de embaixador na Unesco e escrita de um livro sobre o impeachment. Essa história é verdadeira?

Não. Nada disso aconteceu. Se eu tivesse negociado, como votei pelo impeachment, eu deveria ter recebido do governo Temer. O que eu pedi ao Temer? Nada. Aliás, se ele tivesse oferecido, eu era obrigado a recusar, porque as pessoas iam dizer que eu tinha votado em função disso. Era bem possível que se eu quisesse um cargo, eu teria, mas não quis. [nota da reportagem: a assessoria da ex-presidenta Dilma Rousseff foi contactada e disse que não comentaria o assunto].

Delfim Neto escreveu que há um setor esclarecido do governo Bolsonaro que tenta recuperar o caminho virtuoso. O senhor concorda?

Primeiro, esclarecido não é sinônimo de progressista. Eu conheço muita gente esclarecida e conservadora, com argumentos muito fortes. É possível que tenha gente esclarecida, mas eu não vejo. No começo, havia um certo núcleo de militares que pareciam esclarecidos, mas, hoje, eles se entregaram. Eu acho que é um governo muito homogêneo pela direta, pelo conservadorismo e por muitos preconceitos. Mas vamos dar uma colher de chá, vai que a Regina Duarte seja esse núcleo esclarecido.

Acho que o Delfim faz referência sobretudo ao ministro Paulo Guedes e sua equipe. Ele considera que os rumos da economia estão corretos.

Aí o ponto não é ser esclarecido, é ser competente ou não. Cada vez mais me convenço de que a economia é uma questão técnica. A revolução, a transformação é como a gente usa o dinheiro que uma economia eficiente faz. Nesse sentido, se estivesse no Congresso, eu teria votado na reforma da Previdência que o Guedes apresentou. Mas não vejo muita coisa, eu não vejo novidade [na gestão econômica]. E de vez em quando eu vejo barbaridades do ponto de vista de inteligência, como o Guedes dizer que quem danifica o meio ambiente são os pobres. Isso é de uma estupidez total. Quem está sacrificando o meio ambiente é a voracidade de consumo e a ânsia de lucro dos empresários. É esse casamento. 

Mas "despolitizar a economia", que é um termo que o senhor usa no livro, não é um convite à desregulamentação? Uma visão ultraliberal que, no fim das contas, tem ampliado a desigualdade?

Não. A desigualdade não vem disso. A desigualdade vem de não distribuir igualmente o conhecimento por meio da educação. Na hora que o filho do pobre estudar na mesma escola que o filho do rico, a desigualdade cai, desde que a economia seja eficiente para gerar riqueza para todos. A parcela pobre e educada vai se apropriar corretamente. Todos os países que fizeram uma revolução, que deram igualdade na educação, são países que conseguiram caminhar para derrubar a desigualdade social. A desigualdade não é um produto da regulamentação. Até porque a regulamentação não tem esse papel. A regulamentação, quando necessária, é para a economia funcionar melhor. A distribuição não vem da regulamentação. 

Se for distribuir melhor sacrificando a essência econômica, a gente tropeça. Quer exemplos? A Argentina, a Venezuela. Aí você diz: "e o Chile?". O Chile, em dois, três anos, vai estar melhor do que todos esses, porque tem duas coisas: uma educação razoável e políticos que se entendem. Então, eles vão mudar aquilo rapidamente.

O senhor dedica o livro às novas lideranças democráticas e progressistas que estão surgindo. Quem são essas pessoas?

A Tabata [Amaral, deputada federal pelo PDT-SP], o Pedro Cunha Lima [deputado federal pelo PSB-PB, filho do ex-senador e ex-governador Cássio Cunha Lima e neto do ex-governador e ex-deputado federal Ronaldo Cunha Lima], [Felipe] Rigoni [deputado federal pelo PSB-ES], o Túlio [Gadêlha, deputado federal pelo PDT-PE].

Uma das críticas à Tabata e ao Rigoni é a proximidade com o que se chama de "bancada Lemann". Ambos receberam formação em programas ligados ao empresário Jorge Paulo Lemann. 

Em que essa ligação é ruim? Eles vendem o voto para beneficiar o Lemann? Não. Aliás, nas minhas conversas com a Tabata, eu nunca ouvi ela falar do Lemann. O Lemann é um cara que aproveita a fortuna dele para investir em educação. Educação política, inclusive. O Lemann aparece por fracasso nosso. Se os partidos políticos fossem escola, não precisava o Lemann estar botando dinheiro para formar jovens políticos. No meu tempo de jovem, a gente aprendia no partido.

Sobre o Autor

Jornalista e professor universitário na Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo. É também autor do blog Em Desconstrução (emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br), de Universa, coordenador do blog coletivo Entendendo Bolsonaro (entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br), e fundador e gestor do curso online contra fake news Vaza, Falsiane (www.vazafalsiane.com)

Sobre o Blog

Um espaço com visões, provocações e esperanças sobre a mais nobre das atividades humanas: educar.