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Rodrigo Ratier

Com piada sem graça, cercadinho de Bolsonaro dá errado pela primeira vez

Rodrigo Ratier

05/03/2020 04h00

— Qual vai ser a pergunta?

— O presidente Bolsonaro que pediu para você distribuir banana?

— Não vem com esse papo, não. Foi ideia minha. Isso aqui se chama humorista. Qual a próxima pergunta? Ninguém tem pergunta? Não tem pergunta, não? Que é que houve? Não tem pergunta? Ah, não tem pergunta mesmo? Ué, mas não tem pergunta? Não tem outra pergunta lá? Não tem mesmo, não?

Conhecido como Carioca, o humorista Márvio Lúcio fez ontem uma participação especial na sitcom "Cercadinho de Bolsonaro", estrelada e distribuída pelo próprio presidente. Gravada com claque ao vivo, a série tem como premissa distribuir ofensas à imprensa e garantir holofotes para seu protagonista, que assim garante o controle do noticiário. Apesar do enredo repetitivo ainda dar pontos no Ibope, a trama já apresenta sinais de desgaste. Ontem, pela primeira vez, o roteiro não funcionou — como se vê na íntegra compartilhada no Twitter presidencial sob o título "Bolsonabo no Alvorada!":

A audiência sabe que está diante de uma chanchada. Com a palhaçada, o gênero perdeu qualquer verniz de sofisticação: escancarou-se a farsa do cercadinho como forma de desviar a atenção de assuntos importantes que o mandatário não tem interesse ou preparo para abordar. A máscara tosca caiu de vez porque o tema de ontem era impossível de driblar: o raquítico crescimento de 1,1% do PIB em 2019, o menor em três anos. O assunto obviamente exigiria explicações. Coube a um presidente — no caso, o clone bufão — fornecê-las, a pedido do bufão oficial. O diálogo é surreal (minuto 4:59):

[Bolsonaro] — PIB? O que é que é PIB?

[Carioca] — Paulo Guedes, Paulo Guedes.

[Bolsonaro] — Posto Ipiranga.

[Carioca] — Posto Ipiranga, posto Ipiranga.

[Bolsonaro] — Outra pergunta.

[Carioca] — Outra pergunta, outra pergunta. 

A direção da tragicomédia também já não se preocupa em disfarçar que o casting obedece a conveniências. Carioca chegou acompanhado de Fabio Wajngarten, chefe da Secretaria Especial de Comunicação Social (Secom). Seu papel no elenco é simples de entender: ele é a personificação do conflito de interesses, operando nos dois lados do balcão. Numa ponta, decide para onde vai a verba publicitária do governo — emissoras de TV, por exemplo. De outro, como principal sócio de uma empresa de consultoria, recebe dinheiro das mesmas TVs que ele contrata na Secom. 

Bolsonaro de mentirinha é a mais nova estrela da Record, canal atendido pela firma de Wajngarten. A participação da emissora de Edir Macedo no bolo publicitário da União na TV aberta saltou de 26% para 42% entre 2017 e 2019. Outra coirmã, o SBT, cliente do chefe da Secom até 2019, ampliou sua fatia de 25% para 41%. Nomes e siglas acabaram confundindo Bolsonaro na hora de explicar à claque qual das emissoras amigas transmitiria sua participação como coadjuvante de esquete humorística (minuto 5:46):

SBT? SBT? Record! Domingo Espetacular!

A grande falha de continuidade, porém, veio pela recusa dos "escadas" em preparar a piada para o palhaço. Diante dos jornalistas, Márvio Lúcio tenta distribuir bananas. Ninguém pega. Em seguida, pede que lhe façam perguntas. Recebe apenas uma, indagando se a palhaçada era ordem de Bolsonaro. Responde atravessado e espera que venham outras. Não vêm: alguns jornalistas dão as costas, e o que se segue é o constrangedor monólogo que abre esse texto. Falando sozinho, o humorista tenta brincar com os microfones, saúda a CNN Brasil, ameaça ir embora. O embaraço é tão evidente que nem mesmo a sempre zelosa claque se dispõe a rir. Carioca sente na pele que não existe humor "a favor". A graça é, por definição, do contra, adversária do poder. 

Pela primeira vez, ainda timidamente, os profissionais da imprensa recusam fazer parte do circo presidencial. Não há mais perguntas nem para o humorista nem para o presidente. Referência incontornável da sociologia, o alemão Norbert Elias (1897-1990) analisa as relações de poder com a noção de "força relativa": "Quem tem maior potencial de reter aquilo de que o outro necessita? Quem, por consequência, está mais ou menos dependente do outro? Quem, portanto, tem que se submeter ou se adaptar mais às exigências do outro?". Desse ponto de vista, não existe dominação absoluta. Os dominados guardam sua dose de poder, e também são capazes de reagir. Prenúncio de turning point? Fim de temporada para o cercadinho? Que venham os próximos capítulos.

Sobre o Autor

Jornalista e professor universitário na Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo. É também autor do blog Em Desconstrução (emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br), de Universa, coordenador do blog coletivo Entendendo Bolsonaro (entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br), e fundador e gestor do curso online contra fake news Vaza, Falsiane (www.vazafalsiane.com)

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Um espaço com visões, provocações e esperanças sobre a mais nobre das atividades humanas: educar.