As humilhações de Bolsonaro vão continuar; e temos culpa nisso
ECOA
18/02/2020 10h49
Liturgia do cargo é a expressão que indica o comportamento que se espera de ocupantes de postos públicos. Em tese, deve-se primar pela ética e pela urbanidade, não apenas por respeito à população, mas também pelo fato de a visibilidade conferir ares de modelo de conduta aos comportamentos. Como se sabe, o conjunto das palavras, formas e gestos que hoje compõem a liturgia presidencial mudou radicalmente. Como acabou a mamata da boa educação, hoje vale fazer banana para repórter, mandar calar a boca ou perguntar para a mãe, dizer que algum profissional não tem vergonha na cara, que parece um homossexual terrível. A mais recente, de hoje de manhã: "Ela queria dar o furo a qualquer preço contra mim", insinuação de cunho sexual contra a repórter Patrícia Campos Mello.
O palco de boa parte do festival de ofensas do presidente Jair Bolsonaro é o já infame "cercadinho do Alvorada", área restrita em que os jornalistas ficam confinados à espera de alguma declaração presidencial. Ao lado, posiciona-se uma claque de apoiadores, algo como uma turma da 5a série que só falta — às vezes não falta — urrar quando um valentão humilha alguém na sala.
É possível vasculhar arquivos e ver se algo de útil, em termos de interesse público, saiu das interações nessas condições. Duvido. O que fazer?
Bolsonaro está na dele. Desde os tempos de deputado, quando buscava o choque como forma de notoriedade, soube jogar o jogo da espetacularização. Suas falas preconceituosas — "corajosas!", para os apoiadores incondicionais — rendiam entrevistas e uns pontinhos a mais para programas trash de auditório. Em entrevistas antigas, ele próprio admite que só assim ganhou notoriedade. Como presidente, não mudou. Conheço gente indignada por parte da população não respeitá-lo como ocupante legítimo do cargo máximo da nação. O pedido é delicado: como respeitar uma figura que não se dá ao respeito?
É possível pensar nos repórteres. Por que se submetem às ofensas? O medo é um grande indutor. Xingar o presidente pode caracterizar injúria, crime que, em tese, levaria à prisão (algo raríssimo, mas gente, é Bolsonaro). De todo modo, é possível ser firme sem perder a fleuma ("presidente, o senhor está faltando com o respeito", "não agrida quem está trabalhando", "um pouco mais de educação, por favor", "essa resposta não convida ao diálogo").
Há uma outra fonte de temor: o de perder o emprego. Jornalistas são empregados e, como tal, cumprem ordens de seus empregadores. Justiça seja feita: há perguntas incômodas — para isso os profissionais são pagos — que não deixaram de ser elaboradas por conta dos xingamentos. Nesse nível, a intimidação parece não estar funcionando.
Mas a obviedade do "tenho de ir" é, como disse, apenas aparente. Como classe, os jornalistas poderiam se recusar, por meio de uma decisão coletiva, a passar pelos perrengues impostos pelo Planalto. Mas parece que estamos falando de um passado distante em que o individualismo absoluto não era a norma. No caso dos jornalistas, categoria tradicionalmente atomizada, talvez estejamos falando de uma ficção. Ou não: o jornalista Alberto Villas relembra episódio semelhante, em janeiro de 1984, no governo Figueiredo, quando os repórteres fotográficos deixaram suas câmeras no chão quando o presidente — outro grosseirão — passou diante deles. Era um protesto pelo péssimo tratamento.
Mas há outros complicadores.
Primeiro a própria natureza do jornalismo. Trata-se de uma profissão eminentemente concorrencial. A busca pela informação exclusiva, é um dos imperativos da profissão. É possível que viva em alguns a esperança de que algo relevante saia do circo do cercadinho. Ou o temor de que estarão perdendo alguma coisa caso se ausentem da cobertura. Exceto para os catalogadores de ofensas, não é o caso até agora. Ainda assim, a sede pelo furo tem sido maior que a solidariedade de classe.
Segundo, como diria Garrincha, é preciso combinar com os russos. Qual proprietário dos grandes veículos de mídia estaria pronto para ignorar o circo? Bolsonaro e companhia dão audiência. Também foram hábeis em criar — não há exagero na palavra — um império de comunicação, composto de sites hiperpartidários, grupos públicos de WhatsApp, perfis políticos de grande alcance e veículos aliados na mídia tradicional. De olho em influência e verba publicitária governamental, emissoras como SBT e Record estreitaram a proximidade com o governo e hoje o cobrem de maneira acrítica, francamente favorável. Estariam no cercadinho — que, na ausência de quem o presidente trata como inimigo, talvez até ganhasse alguns mimos.
Terceiro, e aí entramos nós: o que os veículos de mídia vendem são eyeballs, nossos olhos, que não resistem a uma espiadinha na última grosseria do capitão. É a dissociação clássica entre interesse do público — aquilo em que a audiência efetivamente consome, vê, escuta e clica — e o interesse público — ligado ao papel da mídia de divulgar informação relevante para o bem-estar de uma coletividade. A verdade é que, por um misto de esperteza e falta de repertório, Bolsonaro seguirá sendo o bufão histriônico do Superpop de Luciana Gimenez. Isso dá audiência.
É conhecida a imagem da imprensa como watchdog, o cão de guarda que fiscaliza os passos dos poderosos e sinaliza os malfeitos. Habilmente, mandatários midiáticos e populistas como Bolsonaro têm conseguido enlouquecer o cachorrinho, fazendo-o perseguir o próprio rabo. A respeito dos tuítes de Donald Trump, um mestre em agendar a pauta da imprensa, o jornalista Tom Rosenstiel, autor e diretor do American Press Institute, declarou: "Precisamos de jornalistas para cobrir o que é importante, não para latir para todos os carros." É bem mais fácil falar do que fazer: o problema é complexo, dá para repartir responsabilidades entre vários atores. Um ação coordenada entre eles parece fora de perspectiva. Enquanto isso, o humilhante cercadinho de Bolsonaro reinará.
Sobre o Autor
Jornalista e professor universitário na Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo. É também autor do blog Em Desconstrução (emdesconstrucao.blogosfera.uol.com.br), de Universa, coordenador do blog coletivo Entendendo Bolsonaro (entendendobolsonaro.blogosfera.uol.com.br), e fundador e gestor do curso online contra fake news Vaza, Falsiane (www.vazafalsiane.com)
Sobre o Blog
Um espaço com visões, provocações e esperanças sobre a mais nobre das atividades humanas: educar.